26.7.09

O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago

Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Era português, chamava-se Fernando e a muitos tal parecerá bastante. Ignoram os mesmos muitos que uno ninguém jamais será, salvo talvez se uno houver vivido toda sua existência—fato, sabemo-lo, bastante improvável. Muitos somos todos, por mais que nos custe acreditar ou se ignore que é no outro, a partir do outro, do olhar, do gesto e da voz do outro, que aos poucos juntamos os pedaços que nos multiplicam e nos fazem, apenas aparentemente, um.

E foi em semelhante processo, esse de multiplicação humana, que se especializou o supracitado Fernando, que sabia idiomas e fazia versos. Um dia, mirando o espelho, surpreendeu-o uma figura de cada rapada, puxado a moreno, que lhe disse, Chamo-me Ricardo Reis. Este outro, poeta também, médico por profissão, interessa-nos particularmente, por ter sido o protagonista escolhido por outro português para biografar-lhe a diáfana existência, tornada real na Poesia pelo Fernando, e por um José na Ficção.

Real digo, no sentido vernáculo de ontologicamente verdadeiro, pois é isto que faz Saramago em sua ficção. Tomando emprestadas as palavras de José J. Veiga, o que Saramago consegue com suas narrativas é exatamente "fazer o que fez Homero antes dele, isto é, escrever histórias aparentemente reais mas inventadas com tanta competência que depois de lidas passam a ser reais e a fazer parte da longa e sofrida experiência humana.”

'O ano da morte de Ricardo Reis' é mais uma prova de sua ampla capacidade imaginativa e engenho literário: primeiro porque, em se tratando de heterônimos do Fernando Pessoa, a escolha foi mais que acertada. Aquele, escritor do verso "Sábio é o que se contenta com o espetáculo de mundo", não poderia ser melhor protagonista das transformações sofridas no mundo entre guerras, o que justifica a pouca intervenção que Ricardo, imaginado real possui na história verdadeira. Segundo, pois, caminhando mais uma vez sobre a linha fronteiriça entre literatura e história, o autor nos traz o angustiante retrato de um estóico frente a irrefreáveis mudanças políticas, culturais e ideológicas. Por fim, o trabalho com a linguagem segue à risca as metafísicas preocupações, os labirínticos questionamentos daquele Fernando que, uma vez morto, não sabe mais idiomas ou escreve versos, mas caminha pelo mundo na sombra do que lembra, com a consciência e a autoridade daquele que tudo julga, a si mesmo e à vida.

No comments: