22.9.11

Capitães da Areia, de Jorge Amado

“No começo da noite caiu uma carga-d’água. Também as nuvens pretas logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam, brilhou também a lua cheia. Pela madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mais que tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas do Grande Carrossel Japonês.”

Não é difícil compreender o sucesso de público de Capitães da Areia. Construído com leveza jornalística, riqueza de detalhes e muita empatia—Zélia Gattai, mulher de Jorge Amado, afirma que ele chegou a dormir com os meninos no trapiche enquanto escrevia—, o romance é vigoroso e atual além de programaticamente sentimentalista. Seus expedientes narrativos são bem delimitados e cuidadosamente empregados pelo autor, seja com a intenção de emocionar, revoltar, fazer rir, chorar ou suspender o leitor.

Como o carrossel da passagem acima, o romance tem um traçado evidente para cada uma de suas personagens, cujos destinos diversos convergem para a mesma denúncia social e mensagem de esperança. Do microcosmo social formado pelas crianças Pedro Bala, Professor, Boa-Vida, João Grande, Sem-Pernas, Gato e Volta Seca insurgem um cangaceiro, um frade, um vigarista, um artista plástico, um marinheiro, um militante proletário e um suicida, caracterizados romanticamente pelo autor com traços de lírica folhetinesca, como na passagem: “Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que a amavam, os seus poetas.” Ou ainda através da “larga, livre e ruidosa gargalhada dos capitães da areia, que era como um hino do povo da Bahia.”

Folhetinescos são também os conflitos que movem a trama do romance (pobres contra ricos, fracos contra fortes, oprimidos contra opressores) organizado em episódios esparsos fortemente tematizados. Em cada um deles, o sonho, a redenção ou a utopia se relacionam de diferentes maneiras e em diferentes graus com as histórias e visões de mundo das personagens. A mais tocante entre elas, sem dúvida, a trajetória de Sem-Pernas, garoto manco que se vale de seu defeito para ser acolhido em casas de ricos e assaltá-las em seguida. Vítima da crueldade, do descaso e do abandono ele alimenta um ódio pela vida cujo único fim possível é a auto-aniquilação, que o redime em um mergulho de última afronta à vileza do mundo que lhe negou a felicidade:

Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.

A praça toda fica em suspenso por um momento. “Se jogou”, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio. O cachorro late entre as grades do muro.

É sempre com muita beleza que Jorge Amado descreve os momentos de transformação ou epifania dos meninos do trapiche: à bruteza de uma infância perdida—ainda que nunca irrecuperável, como o sugere a passagem do carrossel—correspondem delicadas imagens retiradas à natureza e ao movimento do mundo. Todavia, ele não se atém à simples observação: há um posicionamento revolucionário no romance, que sugere o descaso da sociedade com essas crianças, e a necessidade de voltarmos os olhos ao problema. A indicação de que há uma estrutura social injusta na base desse sofrimento fica patente na transformação precoce de meninos em homens, como sugere o trecho a seguir:

“Desde pequenos, na arriscada vida da rua, os Capitães da Areia eram como homens, eram iguais a homens. Toda a diferença estava no tamanho. (...) Sempre tinham sido como homens,na sua vida de miséria e de aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças. Porque o que faz a criança é o ambiente de casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca que eles tiveram pai e mãe na vida da rua. E tiveram sempre de cuidar de si mesmos, foram sempre os responsáveis por si.”

Há uma urgência no romance que caminha para a irreversibilidade, ainda que o autor aponte duas saídas, uma para o indivíduo e a outra para a sociedade: o amor e a revolução. O episódio de Dora, mãe, irmã e noiva dos Capitães da Areia, representa a sede de amor e ternura que aflige os meninos, sugerindo que lhes bastam cuidado e carinho genuínos para que abandonem a precocidade que os fez homens. A revolução se faz em grupo, em uma sociedade irmanada, mas cada indivíduo precisa portar no peito aquela "estrela no lugar do coração", que é tanto de bravura quanto de respeito aos que lutam a seu lado. Como o amor de Dora: “uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma noite de paz da Bahia.”

Publicado em 1937, Capitães da Areia vem comovendo com excelência e assombro gerações e gerações de leitores.

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