
Livre do maniqueísmo característico de suas primeiras obras, os romances da segunda fase de Jorge Amado oferecem uma visão de mundo que comporta o sim, o não e uma terceira possibilidade inusitada: Gabriela casa sem casar, dona Flor tem dois maridos, Quincas morre e não morre para morrer de novo. No entanto, essa visão carnavalizada do mundo não é só veiculada nas ações das personagens: em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua é possível observar como o relato dos sucessivos óbitos de Joaquim Soares da Cunha se realiza por meio de uma multiplicidade de pontos de vista, e como versões antagônicas de sua derradeira morte são postas lado a lado aproximando o mundo médio-burguês do funcionalismo público ao universo da vadiagem dos bairros populares da Bahia.
Desde o primeiro capítulo da novela passam a se confrontar os dois mundos que determinarão a oscilação de pontos de vista da obra. De um lado a versão da família: a morte moral do distinto Joaquim Soares da Cunha que abandonou mulher e filha para viver na vadiagem, seguida dez anos depois pela morte física do vagabundo Quincas, que assinala para a família a possibilidade de restaurar dignamente a memória do avô, pai e marido. O outro lado da moeda revela o mundo da vadiagem, dos malandros, jogadores e prostitutas, para quem a frase final do finado representou “mais que uma despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo” (AMADO, 2008, p.13-4). A essa versão, persiste o esforço da família do morto em negar-lhe qualquer autenticidade. Oportunidade de que se utiliza o narrador para contrapor o mundo preto-no-branco burocrático e a colorida vivência da liberdade, deixando claro qual é vida, qual é morte.
Quincas é uma figura sintomática dentre os protagonistas da segunda fase do autor: são eles homens e mulheres que dizem não, que recusam sua submissão às engrenagens repressoras da sociedade. Quincas rejeita a morte que não escolheu, rebela-se contra a vontade dos familiares que procuram restituir a dignidade do burocrático Joaquim, realiza seu próprio enterro. Sua gente é uma gente marginal, rebelde, que defende e goza o direito à liberdade, finca suas raízes, domina “toda a cena com suas falas que soam verdadeiras e fortes, suas ações cheias de heroísmo, sua luta para sair da condição de vítimas sociais, sua busca de liberdade e justiça, sua irreprimível alegria, seu incontrolável erotismo” (MACHADO, 2006, p.80). Autor e personagens não escondem em qual lado da história preferem crer: escolhem sempre o impossível que não há.
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