14.8.11

Notas do subsolo, de Fiodor Dostoievski

Do ponto de vista da psicologia, a construção esmiuçada de tipos

é, provavelmente, uma das maiores contribuições que a literatura pode dar àquela esfera do conhecimento. Shakespeare, Cervantes, Balzac e Machado de Assis, só para citar alguns dos autores mais exponenciais nesse campo, são responsáveis por dezenas de figuras que hoje habitam nosso cotidiano e são sintomáticos de determinados traços de personalidade e comportamento capazes de encontrar ecos em indivíduos de qualquer sociedade. O avarento, o vingativo, o ciumento, a amante incondicional, o desvairado são freqüentemente referidos no dia a dia por personagens célebres da literatura mundial, isso quando não atingem o auge da fama ao emprestarem seus nomes a famosos complexos da psiquiatria.

“Uma solução brilhante para o problema do conteúdo filosófico no interior da forma literária”, nas palavras de Steiner, com Notas do Subsolo (1864), Dostoiévski logrou ainda construir um sujeito essencialmente amotinado contra as leis naturais, um tipo que ao mesmo tempo em que é resultado da sociedade em que vive, não pode aceitar nem consegue ser aceito por ela. Desta forma, a consciência aguçada deste homem subterrâneo não possui lugar nas engrenagens sociais do século XIX e, por conseguinte, resta-lhe viver em seu canto provocando a si mesmo com a “desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada”. Para ele, “o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado”. Amargurado, desconfiado e ressentido, o homem subterrâneo se regozija na autoflagelação, na afronta moral e perversa de si mesmo e dos outros, ainda que, em seu desejo de maldade, nunca consiga tornar-se verdadeiramente cruel, nem seja capaz de se vingar: “eu não conseguiria me vingar de nada e de ninguém, porque provavelmente não me decidiria a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse.” Em seu subsolo abjeto, humilhado, abatido e ridicularizado, ele rapidamente mergulha num “rancor frio, peçonhento e, principalmente, perpétuo”. Caçoa perversamente de si mesmo, provocando-se com a própria fantasia —exagerando os efeitos de suas ações e subvertendo os motivos para que sirvam de alimento a seu ódio. Sua inteligência aguçada lhe rendeu um amor-próprio exagerado, que lhe faz o “principal culpado de tudo, mesmo sem culpa”. Inventa motivos para se sentir ofendido até o ponto de realmente acreditar em seu capricho. Contradizendo-se continuamente, num jogo estilístico e argumentativo capaz de lograr o leitor seduzido por sua prosa, o homem subterrâneo não se respeita: afinal, “um homem com consciência pode ter algum respeito próprio?” Como mais tarde ecoará em Brás Cubas—um dos mais bem desenvolvidos exemplares do homem subterrâneo nas letras brasileiras—em toda a sua vida nunca conseguiu começar nem terminar coisa alguma, e é acima de tudo “um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho”, pois “o único e evidente destino de todo homem inteligente é tagarelar”.

É capaz de jurar que não acredita em uma palavra sequer do que escreveu. Ou talvez acredite, ainda que ao mesmo tempo desconfie que esteja mentindo desbragadamente.

Organicamente expelido da engrenagem social por sua inutilidade prática, o homem do subsolo criado por Dostoiévski — neste autoflagelante monólogo sobre o paradoxo do livre arbítrio e da lei natural — se rebela contra todo materialismo e conformismo de sua época, gracejando à medida que range os dentes como um anti-herói desumanizado, sem possíveis leitores e desacostumado com a vida, completamente obcecado com a própria impotência para lidar com a realidade que o cerca.

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