15.9.11

O País do Carnaval, de Jorge Amado.

Entendedor ou não da obra de Jorge Amado, um leitor que lhe conheça somente a fama das personagens, uma ou outra adaptação seja televisiva, seja cinematográfica, ou mesmo apenas as por vezes sugestivas (quando não apelativas) capas de suas edições, esse leitor, desavisado ou profundo estudioso, pouco se surpreenderá em descobrir que o primeiro romance do escritor baiano foi chamado "O país do Carnaval".

Os quitutes, os bobós de camarão, as moquecas de peixe, os temperos e aromas, a ubiqüidade da cana, as fantasias, a sensualidade nas rodas de samba, a satisfação dos desejos, a insaciedade do corpo, as mulatas, os tabuleiros das baianas, as mães de santo, os beberrões, o colorido dos vestidos, o bronze das pernas, a abastança dos bustos, a vivacidade explosiva do sol, a volubilidade do mar, os Quincas, as Gabrielas, as Tiêtas e Donas Flor, toda a obra de Jorge Amado é um complexo mosaico carnavalizado de formas, cores, sons e cheiros—estouro beatífico dos sentidos.

Ora, o princípio do carnaval, em termos bem bakhtinianos, é aquele do mundo às avessas. Os lugares-comuns pululam, quase não se pode evitá-los: o tolo se torna rei, a transgressão é norma, o feio vira bonito. Em Jorge Amado, a carnavalização aparece principalmente quando se distancia da denúncia social e do realismo socialista de seus primeiros romances e se lança à fase mais branda das crônicas de costumes, mergulhando na vida do povo brasileiro e sua relação com a morte, com o riso e com a satisfação do corpo.
Nessa ótica, é a carnavalização que vai ocupar um lugar privilegiado, dando primazia ao acúmulo de detalhes, de fatos menores, de episódios incidentais, formando uma massa factual em que predominam o riso, o prazer, os apetites e a ‘zona abaixo da cintura’, além da possibilidade da troca de lugares ou relativização das posições de poder. (Pellegrini, ‘Despropósitos’.)

"O país do carnaval", no entanto, nascido da geração de 30, restringe a seu título e a algumas poucas passagens aquele gérmen da carnavalização. O trecho a seguir, é bastante ilustrativo (e ainda é capaz de nos remeter ao cordialismo que será tão bem devassado por Sérgio Buarque de Holanda cinco anos mais tarde):

(Porque na Bahia, boa cidade de Todos os Santos e em particular de Senhor do Bonfim, todo mundo é intelectual. O bacharel é por força escritor, o médico que escreve um trabalho sobre sífilis passa a ser chamado de poeta e os juízes dão valiosas opiniões literárias, das quais ninguém tem coragem de discordar.)

Nas palavras do autor: “Este livro é como o Brasil de hoje. Sem um princípio filosófico, sem se bater por um partido. Nem comunista, nem fascista. Nem materialista, nem espiritualista. (...) Este romance relata apenas a vida de homens que seguiram os mais diversos caminhos em busca do sentido da existência. Não posso bater-me por uma causa. Eu ainda sou um que procura...” Nele, publicado em 1931, Amado parodia criticamente o sentimento de país do futuro que a década anterior incutira nos discursos da elite intelectual brasileira, apresentando-nos a um grupo de homens das letras, obcecados por uma finalidade na vida e pela busca da Felicidade, assim maiúscula mesmo. O discurso que será o tempo todo refutado ao longo do romance aparece logo no início, em voz anônima: “O Brasil é o país verde por excelência. Futuroso, esperançoso... Nunca passou disso... Vocês, brasileiros, velhos que já foram e rapazes que são a esperança da Pátria, sonham o futuro. ‘Dentro de cem anos o Brasil será o primeiro país do mundo.’”

A tese que Jorge Amado monologicamente constrói, no entanto, subverte essa visão em todos os seus sentidos a partir do refrão insistente, como um bom samba-enredo, que se repete do princípio ao fim da narrativa: o Brasil é o País do Carnaval e, por isso mesmo, está à beira do abismo. Qualquer tentativa de mudança dessa realidade, sugere o autor, não encontra repercussão no seu povo que samba lado a lado à fome e à miséria bem no meio da rua. “O país continuou o mesmo. Não melhorou, nem piorou. Feliz Brasil, que não se preocupa com problemas, não pensa e apenas sonha em ser, num futuro muito próximo, ‘o primeiro País do Mundo’.”

Paulo Rigger, protagonista do romance, incorpora a geração filha do entusiasmo e herdeira do desencanto: em busca de uma conciliação entre suas veleidades burguesas e a responsabilidade de integrarem a elite pensante brasileira. Representativo da mentalidade de início de século, José Ticiano (atenção ao classicismo no nome), que simbolicamente vai perdendo a visão no romance, é o guia espiritual e contraponto da juventude representada por Rigger, desnorteada e edipicamente tentando encontrar seu próprio caminho, ainda que sob o jugo da sombra paterna.

O conflito que caracterizou a geração de 30 e seu predecessor, o Movimento Modernista, fica patente no diálogo a seguir entre José Lopes (“inteiramente integrado no espírito de seriedade da geração que aparecia”) e Ticiano:

- O caso das nossas gerações é o mesmo que o da literatura de antes e de depois da Guerra... Uma literatura de frases: a outra, literatura de idéias.

- Não é assim. Mas, mesmo que fosse, eu ficaria com a literatura de antes da Guerra. Eu, quando leio um artigo, não quero saber se o seu autor tem ou não boas idéias, se é ou não útil. O que eu quero saber é se ele é ou não escritor, se escreve bem ou mal. Mas a verdade é que a literatura anatoliana tinha também idéias. Dava soluções. Mandava que se duvidasse sempre. É ou não uma solução? Colocava a Beleza acima de todas as coisas. Vocês aceitam Deus porque Deus é útil. Nós o negávamos porque achávamos que ele não satisfazia nosso ideal estético.

- Vocês eram terrivelmente egoístas. Ególatras, às vezes.

- E vocês praticam o egoísmo na sua forma mais torpe: o humanitarismo. Nós queríamos a aristocracia do talento, do espírito. Vocês hoje pleiteiam a aristocracia da força. Vocês fazem com que a inteligência abra falência... Só a cultura fica valendo alguma coisa. Porque só a cultura é útil.

- Mas vocês foram fracassados.

- Sim, porque toda vitória na vida é um fracasso na Arte...

- Já passou a época dos paradoxos, Ticiano.

- É verdade. E chegou a das citações...

À guisa de conclusão, seguindo o exemplo do mestre, resta-nos macaquear uma saída desta resenha, com os dedos em riste e ensaindo passos de samba, repetindo entre orgulhoso e ressabiado o refrão que nos enfiam diariamente goela abaixo, Viva o país do carnaval, êo êo, Viva o país do futebol, êa êa.

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