14.9.11

A estrela sobe, de Marques Rebelo

Após o frenesi cultural que representou o Movimento Modernista no Brasil da década de 20, em que tanto foi dito e tão pouco produzido a que possamos efetivamente louvar qualidades de obra de arte, nossa literatura tomou novos rumos, distanciando-se da preocupação estética daqueles anos de euforia iconoclasta e se aproximando mais amiúde da inquietação ideológica e social, dirigida ao conhecimento e avaliação da realidade brasileira. Como nos aponta Antonio Candido, predominava nos anos 20 uma atitude de ingênua alegria, fomentada pela ideia de país novo que caminhava para um futuro promissor, prenhe de conquistas e potencialidades transformadoras. No decênio seguinte, essa ideia perdeu o viço e cresceu em gravidade, transformando-se na pré-consciência do subdesenvolvimento, premindo a necessidade de se mergulhar na incompletude do presente para esquadrinhá-lo através de uma literatura pós-utópica.

Ainda que não possamos seguir certos críticos nas leituras do romance de 30 como um prolongamento de experiências modernistas, é preciso reconhecer que o movimento de 22 estabeleceu um ambiente propício à aceitação e propagação de uma literatura bastante específica, atuando sobre um sistema literário capaz de absorver mais facilmente a explosão de romances regionalistas a que assistiu aquele decênio. No entanto, como é possível inferir da produção artística de qualquer época, ainda que haja predominância de um ou outro gênero, uma ou outra forma poética, este ou aquele Shakespeare, nem só de regionalismos viveram os anos 30. Nesse decênio conviveram lado a lado a já referida e quase ubíqua prosa social de cunho neorealista, a narrativa intimista, o romance psicológico e a ficção urbana, manifestações tão distintas muitas vezes comprimidas nas tentativas da história literária de reduzi-las a duas principais correntes, rotuladas ‘regionalista’ e ‘psicológica’.

A força com que a geração de 30 lançou grandes nomes da literatura brasileira do século XX, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou Jorge Amado, ofuscou de certa maneira obras-primas que se associavam a tendências menos evidentes à época, como é o caso daquela parcela de ficção urbana de que “A estrela sobe” é representativa. Publicada em 1939, essa é a história de uma jovem “carioca da gema” empenhada em ascender na vida para fugir do determinismo de sua origem humilde. Afastando-se peremptoriamente da figura-síntese do “fracassado” que se entrega à própria insolução, das desumanizadoras paisagens áridas, da terra batida, estática, e do homem-bicho, surge o desvario da cidade grande, apinhada de ruídos, movimentos, consciências e sonhos. Diferente do que se poderia supor, apesar da origem humilde da protagonista não há vitimizações em “A estrela sobe”: Leniza Máier não é mais ou menos sujeita aos reveses da vida do que somos nós todos em uma cidade grande, quiçá em qualquer lugar. E nesse sentido, a epígrafe retirada aos Lusíadas é bastante clara:

Oh! grandes e gravíssimos perigos!

Oh! caminho da vida, nunca certo!

O turbilhão da vida, os caminhos incertos, os erros e acertos são as grandes engrenagens que dão movimento a essa história da era do rádio. Leniza Máier, aspirante a cantora profissional em uma emissora, é uma coquete espirituosa, dissimulada e cheia de caprichos: multifacetada como uma estrela, cujo brilho intermitente torna difícil captar sua verdadeira forma, “um poço sem fundo”.

Refletindo magistralmente a multiplicidade de vozes e pontos de vista da cidade grande, a narrativa de Rebelo é irregular, movendo-se da cena ao sumário muitas vezes em um mesmo parágrafo, alternando os registros entre o discurso direto, indireto e indireto livre, como se pode observar na passagem a seguir:

Leniza discava:

- Aposto que já lhe encheram os ouvidos. Não tem importância. Não ligo. É mágoa dessa gente... Alô ! É do Edifício Castro? Podia fazer o favor de me chamar o dr. Oliveira? – Seu Gonçalves troca olhares com os caixeiros. E o porteiro informava que o dr. Oliveira não estava. – Mas ele ainda não chegou? – Já chegara, sim, mas saíra logo, não queria deixar algum recado? – Não obrigada – e Leniza com melancolia despediu-se do vendeiro que trocou novos olhares com seus auxiliares, com melancolia subiu a ladeira. Rádios fanhosos, falatórios, berros, choros de crianças... Ia subindo.

Ou ainda mais radicalmente quando faz uso de cortes bruscos, em que o sentido deixado incompleto numa cena é retomado em outra, completamente resignificado, a exemplo do trecho abaixo:

Dona Manuela nunca vira tanta maluqueira. E vai ser por todo este mês, mamãe. Ali não ficaria mais. Iria procurar logo apartamento. Pequeno, mas decente. Chagava de Saúde, de ladeiras, de ratos, de hóspedes, de baratas, de banho de chuveiro! Nunca ..................................................................................................... mais olhe para mim, Mário. Nunca! Fuja do meu caminho. Você é abjeto, Mário. Asqueroso, pior do que escarro! Cem, mil vezes pior!

Leniza é vivaz e ao mesmo tempo diáfana. Capturá-la em seu fulgor de estrela significa não se deixar ofuscar, permanecendo atento às nuanças de sua psique. Sua natureza escorregadia é a mesma que Chico Buarque imortalizou inúmeras vezes em sua música, como uma Rita, uma Iracema, uma Rosa e agora, bem recentemente, uma Essa pequena. O próprio autor, no belíssimo final do romance, reconhece tê-la deixado escapar:

aqui termino a história de Leniza. Não a abandonei, mas, como romancista, perdi-a. Fico, porém, quantas vezes, pensando nessa pobre alma tão fraca e miserável quanto a minha. Tremo: que será dela, no inevitável balanço da vida, se não descer do céu uma luz que ilumine o outro lado das suas vaidades?

A interrogação, inexorável, é a prestação de contas tanto do romancista quanto do leitor, por tentarem devassar aquele perene mistério das estrelas.

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