1.9.11

Anedotas do destino, de Karen Blixen

Em 'Alguns aspectos do conto', ensaio originalmente apresentado sob a forma de conferência em Havana por volta de 1962-3, Júlio Cortázar construiu os fundamentos para uma poética da narrativa breve cortazariana. Ainda que pareça a princípio impróprio chamar o argentino para fazer sala em resenha dedicada a uma escritora dinamarquesa, a menção logo se justificará pela necessidade de contraposição. Fazendo eco a outro contista que também se dedicou a examinar a própria arte, o Sr. Edgar Allan Poe--o que aquela exposição mais enfatiza é a urgência do conto. Partindo da noção de limite, esta forma breve se distinguiria do romance da mesma maneira que o cinema da fotografia. Enquanto que narrativas longas e filmes podem se estender cumulativamente, captando a realidade de maneira ampla e multiforme, “o fotógrafo ou contista se vêem obrigados a escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não apenas tenham valor em si mesmos, mas que sejam capazes de funcionar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projeta a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que chega muito mais longe do que o episódio visual ou literário contidos na foto ou no conto.” Em síntese: um romancista ganha por pontos, ao passo que quem conta um conto precisa arrebatar como que por nocaute.

Os contos da Sra. Blixen em 'Anedotas de Destino', todavia, se movimentam no sentido contrário ao imaginado por Cortázar. Suas histórias se desenvolvem contra a urgência de uma forma espacialmente limitada, onde o princípio daquela 'leitura de uma sentada' que propunha Poe se desvanece no andamento de um passo lento e bem planejado. Essa impressão, certamente, é tributária da tessitura intertextual com que Blixen logrou fabricar todas as narrativas da coletânea, alimentadas por uma tradição que tanto lhes precede, alongando sua antiguidade, quanto lhes dá continuidade, estendendo sua vida por efeito de novidade. ‘A festa de Babette’, ‘O Mergulhador’, ‘Tempestades’, ‘A História Imortal’ e ‘O Anel’ são os cinco contos que dão unidade à essa obra, garantindo a seu leitor um verdadeiro passeio pelas entrelinhas da tradição, do misticismo, do anedotário popular e da memória, proporcionando um profícuo diálogo entre Shakespeare e os fiordes noruegueses, marinheiros e lendas subaquáticas, a Bíblia e o Corão--reverberando ecos do sempiterno conflito entre liberdade e destino, presos às malhas do imponderável na criação literária.

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