10.2.12

Claraboia de José Saramago

Há muito que se escrever sobre esta obra de José Saramago, extraordinariamente anunciada pela Companhia das Letras como o “romance perdido” do vencedor do Nobel. Ora, perdidas podem se encontrar muitas coisas: as chaves de casa, o troco da padaria, a vontade de trabalhar em dias muito quentes. Pequeno ou grande, o que se perde, perdido está, e pouco se há de fazer. Salvas raras exceções de que se tem notícia na história da literatura, não são muitos os romances que se perderam, isto é, continuam perdidos
pelo fogo, por naufrágio ou por loucura autoral,
sem chances de serem reavidos, como sugere uma visita ao vernáculo. Em que pese a nobre tentativa de tornar as vendas do selo Saramago ainda mais volumosas, não será exagero talvez sugerir que a editora do Sr. Schwarcz, dessa vez, precisaria encontrar-se mais a prumo em suas campanhas publicitárias.

‘Claraboia’ não é, pois, um romance perdido. Mais duas ou três palavras e dá-se cabo ao assunto: em 1953 Saramago submeteu seu datiloscrito de 319 páginas a uma editora que manteve silêncio a respeito da obra. Mais de trinta anos depois, quando o autor já detinha prestígio nas letras portuguesas um telefonema anuncia a honra de editar o romance. A resposta, que tanto tinha de despeito quanto de dor, foi um peremptório, Que o devolvam. Ora pois! (A exclamação é por minha conta.)

É de se imaginar que esse romance preterido, uma das primeiras incursões do autor no gênero, estivesse aquém da qualidade esperada daquele que escreveu ‘Memorial do Convento’, ‘O evangelho segundo Jesus Cristo’ e ‘Ensaio sobre a cegueira’, entre tantas outras obras impressionantes. De que outra forma se justificaria o caprichoso impedimento de sua publicação em vida? Adianto que não é o caso. E foi preciso que a teimosa viúva do autor, Pilar del Rio, em cujo discernimento podemos confiar, o levasse ao prelo para que um novo livro do português chegasse às estantes como obra além da campa
teimosia a que somos todos muito gratos.

Vencido o estranhamento com que o leitor de Saramago forçosamente se depara ao folhear as páginas desse romance e encontrar períodos curtos, travessões indicando discurso direto e outras marcas convencionais da prática narrativa, esse leitor estará diante de uma obra que encanta e impressiona, daquelas de que se diz não-ser-possível-parar-de-ler. ‘Claraboia’ é uma mirada de cima. É a fresta na parede que dá passagem ao ar, é a parte envidraçada de um telhado que deixa entrar a claridade. Através desse óculo, é permitido ao leitor mirar e ver a vida de seis famílias da classe média-baixa portuguesa que ocupam todo um modesto e pequeno edifício em Lisboa na primavera de 1952.

O livro é, portanto, dividido em seis núcleos narrativos que se cruzam ao longo de 35 capítulos. Apesar de ter sido escrito sob a ditadura de António de Oliveira Salazar, ali não há qualquer alusão direta ao ditador – afinal pouco provável seria que passasse pela censura. Lê-se nele, não obstante, um mundo em constante inquirição, onde já se vê o mote que será tão caro ao 'Ensaio sobre a Cegueira', como a importância de se conservar os olhos abertos e enxergar “de uma certa maneira”. Tomando emprestada a ideia de um “laboratório do escritor”, que o tradutor Paulo Bezerra elaborou no prefácio para ‘O duplo’ de Dostoiévski, ‘Claraboia’ revela muitos leitmotiven e formas que irão florescer com a maturidade literária de Saramago, como sua relação com a música clássica e com a poesia de Fernando Pessoa, as cenas de estupro e de lesbianismo, a presença de mulheres fortes, o apelo à enciclopédia do leitor, certa dose de pessimismo inoculada, o velho artesão filósofo e o jovem aprendiz, etc.

O barroquismo tão característico de sua linguagem ainda se apresenta em forma embrionária, sendo raros os momentos em que o discurso parece dar voltas sobre si mesmo para inquirir sobre sua referencialidade no mundo ou sobre seu lugar na memória da literatura. O lirismo contundente, no entanto, já lá está em passagens de bruta força poética e delicada ironia. O narrador/autor passeia como uma câmera de cinema
especialmente no capítulo que abre o romance
passando de um ponto de vista para outro à medida que
as personagens
se cruzam nas escadarias, terraços e umbrais do edifício. Como sugere o título do romance, a narrativa escrutina o dia-a-dia dos moradores do prédio, devassando-lhes a vida por dentro e por fora. No sentido contrário ao que se espera de uma claraboia, o resultado dessa leitura-mirada é sairmos nós, leitores, com mais vida nos pulmões, e maior lucidez no tato com o outro.

No comments: