10.5.11

Relato de um certo oriente & Dois irmãos de Milton Hatoum

O viajante tem sido desde a antiguidade uma fonte privilegiada de relatos. Sujeito do movimento, da transformação, do encontro e da troca—da mesma forma que o comerciante que nunca saiu de sua cidade mas vive em pontos de passagem—, ele é construído sob o signo da intersecção, da inevitável miscelânea formada pela confluência de vários caminhos. O lugar do viajante é um devir, um constante estar em movimento suspenso pela travessia, nem origem e tampouco destino: um lugar imponderável que engendra a elaboração da vivência, urgindo que o sujeito se ponha a narrar para compreender. Esse processo une as experiências de si e do outro, e as combina em um trabalho narrativo extremamente fecundo, em que diferentes vozes se entendem e complementam, formando um relato forte e transformador, como toda boa e velha narrativa oral.

De maneira análoga, o retorno ao lar também impulsiona uma força criadora, ainda que fomentada não pelo presente imediato da viagem, mas pela memória vicária das coisas e lugares significativos ao indivíduo que retorna. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, o retorno é, também ele, uma suspensão: um devir desta vez no tempo, cuja inescrutabilidade do relato torna-o inevitavelmente fragmentado, suspenso entre as lembranças guardadas pelo viajante e a memória aprisionada no espaço-tempo da ausência. Neste caso, a compreensão dependerá mais fortemente da voz do outro, do olhar do outro, da elaboração dialógica. Assim, o relato alteregóico será tanto urgente quanto imprescindível.

Os romances “Dois irmãos” e “Relato de um certo oriente” do amazonense Milton Hatoum são construídos, respectivamente, a semelhança dos processos narrativos acima explicitados. O parentesco com as considerações de Walter Benjamin acerca do narrador não é acidental: é dentro desta tradição de transmissão de experiências—associada aos viajantes e comerciantes em constante fluxo—que o autor se situa, como declarou em entrevista concedida em 1993. Ambos os romances circunscrevem-se em uma vertente da ficção brasileira contemporânea de retorno aos gêneros narrativos tradicionais, como o romance memorialista e histórico, acrescentando-lhe aquilo que há de novidade nos estudos culturais interessados em compreender o multietnicidade presente na configuração latino-americana. No entanto, “sem recorrer aos excessos descritivos que também marcaram parte dos narradores do boom latino-americano, Hatoum consegue absorver em sua ficção o espaço amazonense e relatar seus costumes, sem cair num exotismo hipertrofiado e valorizando referências precisas aos fatos históricos.” (Schøllhammer, 2008).

A produção de Hatoum se situa num momento em que a temática nacional abria espaço à inclusão dos grupos migratórios enquanto constituintes de nossa história, grupos como os dos judeus, dos galegos, dos japoneses, etc. “Relato de um certo oriente” e “Dois irmãos” resgatam a tradição árabe de origem libanesa que se instalou nas ilhas flutuantes de Manaus, tecendo no multiculturalismo de muitas mãos, intrincadamente, o conflituoso encontro de crenças indígenas, costumes islâmicos, natureza extravagante e um lado bastante desconhecido da história nacional.

Duas narrativas sensíveis e sobretudo bem elaboradas, em que o esforço do relato se constrói em conjunto, representando na escassez e na profusão de lembranças a busca pela identidade. Em ambos, "a consciência dos narradores filtra o mundo ao redor para reter apenas as circunstâncias e os detalhes que nela imprimiram sua marca, o que sustenta e realça o impressionismo do 'olhar oblíquo'". (Pellegrini, 2008) Neste processo, a narrativa figura como uma impossibilidade, "que é, dialeticamente, a mesma (...) para todos os homens: a do resgate do passado, da intraduzibilidade do vivido e da incompletude dos sujeitos, os quais, a despeito de sua situação, sempre estarão buscando deslindar algum ponto cego da memória, última e inalcançável fronteira." (idem).

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