15.1.12

O duplo de Fiódor Dostoiévski

Mikhail Bakhtin identifica as raízes do romance dostoievskiano na tradição sério-cômica do diálogo socrático, da sátira menipeia e do romance de aventuras. Esses gêneros se diferenciam dos gêneros estritamente sérios – como a epopéia e a tragédia – na medida em que, ao contrário da seriedade retórica unilateral, da racionalidade, da univocidade e do dogmatismo destes, aqueles apresentam uma “alegre relatividade”, “dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora e de uma vitalidade indestrutível” (BAKHTIN, 2010, p.122). A dualidade, a natureza profundamente dialógica e a relatividade na busca da verdade, dados geralmente no limiar entre a vida e a morte, a loucura e a sanidade, levam as personagens de Dostoiévski, à maneira das personagens dos gêneros sério-cômicos, a se libertarem das determinações histórico-biográficas, comuns aos gêneros sérios, e se tornarem homens de ideias, na acepção mais profunda do termo.

É no limiar entre loucura e sanidade que são narradas as malogradas aventuras do amanuense Yákov Pietróvitch Golyádkin, protagonista de O Duplo. Levada ao prelo no início de 1846, logo após seu aclamado romance de estreia, Gente pobre, trata-se de uma novela sobre o desdobramento da personalidade e o contraste entre as ambições de um conselheiro titular e a impossibilidade de ascensão social na corrupta hierarquia burocrática petersburguense. Contrariando a seriedade do tema, todavia, a novela possui uma composição essencialmente carnavalizada, construída como estilização parodística em dois níveis diferentes, um externo e outro interno à obra: o primeiro diz respeito ao diálogo do texto de Dostoiévski com o estilo elevado de Almas mortas e das narrativas breves de Gógol, como O nariz e Diário de um louco; internamente, a paródia é estabelecida na relação entre o protagonista e o narrador, quando a expressão deste último parece se identificar com a consciência de Golyádkin, para em seguida manter-se a distância com o intuito de parodiar o mesmo Goliádkin de quem parecia compadecer-se.

A oscilação entre paródia e simpatia determina o tom tragicômico da novela, engendrando a ambiguidade característica das obras iniciais de Dostoiévski, nas quais, segundo Frank, “um personagem é apresentado simultaneamente como oprimido pela sociedade e condenável e desprezível do ponto de vista moral” (FRANK, 1999, p.393). Nesta novela, Golyádkin é carente de convívio social e se esforça por ascender socialmente sem, contudo, entregar-se às exigências de “fazer rapapés” e “embelezar o estilo” que a sociedade almejada por ele demanda. Nas palavras de Bakhtin, “a novela conta como Golyádkin queria passar sem a consciência do outro, sem ser reconhecido pelo outro, queria evitar o outro e afirmar a si mesmo, e conta no que isso deu.” (BAKHTIN, 2010, p.247). A discrepância entre a consciência que tem de si mesmo e as ações que desempenha no mundo real, incompatíveis com as relações burocráticas, leva Golyádkin à mania de perseguição que culminará com o aparecimento do duplo – idêntico ao primeiro, mas seu contraponto social: seguro, autossuficiente e zombeteiro – que surge para provocar o protagonista e ser bem sucedido nos espaços aonde Golyádkin fracassara.

A alta concentração de ambiguidade e desintegração em O Duplo impediu que a recepção da novela em 1846 correspondesse às expectativas de Dostoiévski. Frente a um público que procurava obras bem acabadas e com uma mensagem claramente definida, as atrapalhadas aventuras do senhor Golyádkin só poderiam malograr. É interessante notar que aqueles mesmos elementos que garantiram sua repulsa quando de seu lançamento são, para a modernidade, fatores determinantes à sua apreciação, que se baseia no grau de ambiguidade e irredutibilidade da obra. Até hoje O Duplo permanece uma leitura perturbadora, que nos faz lembrar a assertiva de James Wood acerca do escritor russo: “nada na literatura (...) prepara o leitor para os personagens de Dostoiévski” (WOOD, 2011, p.140).

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