6.11.11

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Antes de "Ensaio sobre a cegueira", a preocupação de Saramago parecia se voltar, sobretudo, ao passado e suas “zonas obscuras que sempre hão-de existir”. Consciente da irrecuperabilidade daquilo que passou, o campo de trabalho dos romancistas seria para o autor, portanto, o lugar da correção, no qual aqueles são tentados a “substituir o que foi pelo que poderia ter sido”. (SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote, p.623). No ciclo dos romances alegóricos, por outro lado, seus objetivos enquanto romancista e dramaturgo se intensificam em direção a uma definição final sintetizada pelo autor em quatro palavras: “meditação sobre o erro” (idem, p. 219). Tornadas mais fortes através da alegoria—sinédoque do mundo—as narrativas desse período propõem a reflexão do e depois? benjaminiano, à medida que, por serem focos de irradiação ideológica, não são pensadas radicalmente até o fim, mas oferecem os instrumentos necessário à apreensão do sentido da obra de arte e sua imediata interpretação.

Frente à desintegração da identidade da experiência e à alienação do humano, ao espetáculo do mundo que parece se esforçar reiteradamente em dar mostras da irracionalidade humana, José Saramago outorga-se a “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam” (ESC, p. 241), insistindo na necessidade de “mais razão, e não menos, para curar as feridas que a ferramenta razão, em um todo irracional, infligiu à humanidade” (ADORNO, Notas de literatura, p. 159). O pensamento deste outro alemão é imprescindível ao tateio do tipo de autor que Saramago representa, bem como sua visão de literatura, pois, para Adorno: “A reificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a autoalienação universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance está qualificado como poucas outras formas de arte” (idem, p.57).

A leitura—seja de um romance, ensaio, poema, testemunho ou bula de medicamento, perdoada a obviedade que segue—começa naturalmente com os olhos. Aristóteles, Cícero e Empédocles—só para citar alguns—todos se debruçaram sobre este ponto de entrada do mundo e procuraram compreender os procedimentos implicados na administração da visão. No entanto, somente no séc. XI, em uma academia de ciências fundada no Cairo, é que foi identificada pela primeira vez uma gradação no ato de perceber, que seria a passagem consciente do “ver” ao “decifrar” ou “ler” (MANGUEL, Uma história da leitura, 2009). Essa passagem, além de corresponder ao princípio dos estudos modernos em neurolinguística, será também para qualquer leitor sua entrada no mundo de Ensaio sobre a cegueira, na forma de uma epígrafe que lhe anuncia: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

Definida como um posto avançado por Antoine Compagnon, a epígrafe é tanto símbolo da relação entre textos, quanto índice das leituras que precederam a presente. Mas é, também, acima de tudo “um ícone, no sentido de uma entrada privilegiada na enunciação” (COMPAGNON, O trabalho da citação, p. 120). De maneira análoga à do crítico francês, Saramago considera as epígrafes “o melhor que às vezes os livros têm”, servindo-lhes de “credencial e cartas de rumos.” (SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote, p.458). Ademais, o autor troça: “quem não tiver paciência para ler os meus livros, passe os olhos ao menos pelas epígrafes porque por elas ficará a saber tudo” (SARAMAGO, O caderno, p.147). A brincadeira tem fundo de verdade: pórtico de seus romances, glosa de tudo o mais que há por vir, esses elementos paratextuais são, no ciclo das alegorias, verdadeiras chaves de decifração do sentido da obra, cuidadosamente forjadas pelo autor na forma de ditos imaginários advindos de fontes igualmente irreais—como é o caso do “Livro dos conselhos” de onde haveria saído a admoestação que abre Cegueira.

O caráter alegórico de todo o romance é, desta forma, estabelecido já na entrada do texto que convida o leitor, da mesma maneira que Riobaldo repetidas vezes em seu relato, a não só mirar, mas legitimamente ver o que está sendo narrado: implicando uma compreensão daquilo que se nos apresenta aos olhos. Sem permitir que desviemos a vista, o autor-narrador conta seu conto segurando-nos firme pelas mãos, orientando nosso olhar ao terror inimaginável. O presente é mantido sempre vivo em imagens e comentários, reiterando o tempo todo o conselho que lhe abre o romance, e impedindo que a leitura resvale em um olhar frio e distanciado—o que enfraqueceria seu valor alegórico.

Ademais, ao tornar imprecisa qualquer tentativa de referência espaço-temporal, o autor faz do relato um espelho onde o leitor poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel enquanto cidadão do mundo. O palco do romance torna-se o mundo, e seus atores, todos nós. Uma sugestão que a alegoria—construída pelo autor, mas efetivada na leitura—realiza de maneira contumaz: o sentido final daquele olhar-ver-reparar está no leitor, que precisa voltar-se a si mesmo. E que o leitor não se olvide ainda de como esta cegueira epidêmica corresponde a um mar de brancura e não às tradicionais trevas da privação da visão, e como, do ponto de vista poético e simbólico, Saramago nos guia através dessa perdição na luz pelos caminhos atulhados da imundície física e moral de uma comunidade inorgânica e carente.

(Excertos do ensaio "A EXPERIÊNCIA DO OLHAR E O TEOR TESTEMUNHAL EM “ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA", Berttoni Licarião)


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