8.11.11

O eterno marido, de Fiódor Dostoiévski

Escrito em 1870, ‘O eterno marido’ é considerado um romance fruto da maturidade artística de Dostoiévski. Síntese de sua poética, elaboração formal e temática, a crítica vê nele um dos momentos culminantes da obra dostoievskiana: uma narrativa breve capaz de engendrar temas universais e abrangentes ao lado de elementos bastante específicos e tipicamente russos, principalmente no tocante às relações interpessoais (que amiúde causam estranhamento aos leitores deste lado de cá).

De maneira análoga a de “Notas do Subsolo”, em que temos o desenvolvimento de um “tipo” complexo, “O eterno marido” traz em seu título essa categoria de homem que seria “um complemento da esposa, mesmo que possua indiscutivelmente personalidade própria, (...) ele não pode deixar de ser portador de chifres” (p.49). O livro segue os passos de Vieltchâninov, caracterizado com todos os traços daquele habitante dos subterrâneos: hipocondria, insônia, vaidade, inteligência judiciosa e incontestavelmente dotada, ceticismo. A narrativa se desenvolve a partir do encontro desta personagem com Páviel Pávlovitch Trussótzki, cuja mulher recentemente falecida fora amante de Vieltchâninov quase uma década atrás.

No impecável desenrolar dessa história, Dostoiévski logra orquestrar o suspense com maestria, à medida que as consciências desses dois homens se elucidam nos prolixos embates dialógicos da narrativa. Como apontado por Bakhtin, na obra do romancista as consciências são independentes e vivas, mas só existem no contato com o outro. Para desenvolver a “imagem do homem no homem”, o autor não objetifica as personagens tornando-as consciências submissas à sua visão de mundo. Pelo contrário, ele se põe ao lado dos outros, interrogando, provocando e respondendo sem, no entanto, abafar as vozes das personagens. A polifonia do romance dostoievskiano permite que Vieltchâninov e Páviel Pávlovitch sejam representados de dentro para fora, na sua inconclusibilidade, à luz de muitas consciências isônomas e plenivalentes que revelam umas às outras.

Em ‘O eterno marido’ encontramos uma sucessão de Leitmotiven característicos da obra do autor como a criança sofredora (Lisa), o bufão trágico (Páviel), o sonho prenunciador (nos capítulos 2 e 15) e o já referido homem do subsolo (Vieltchâninov), além de elementos que o aproximam da sátira menipéia*: as cenas de escândalo e excentricidade (em casa dos Zaklébinin), o jogo com oxímoros ('o mais monstruoso dos monstros é o monstro com sentimentos nobres', 'amava-me por ódio'), a publicística ('os grandes pensamentos originam-se mais de um grande sentimento do que de uma grande inteligência'), o riso de escárnio ('ele fica procurando...amantes embaixo da cama'), a embriaguez (estado quase constante de Páviel Pávlovitch). Tudo articulado, no equilíbrio perfeito entre os capítulos, com as próprias motivações psicológicas. Neste breve romance, Dostoiévski atinge o thriller psicológico com centralidade de ação incomum aos romances do autor, geralmente desdobrados em vários outros núcleos narrativos. Representa o epítome da obra aberta: polifonicamente construída e dialogicamente instigante.

*Elementos apontados por Mikhail Bakhtin em Problemas da Poética de Dostoiévski.

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