3.10.11

A senhoria, de Fiódor Dostoiévski

Foi preciso uma segunda leitura para que a impressão de obra difusa, disparatada, fruto de uma “fantasia mirabolante” que caracterizou meu primeiro contato com esta novela dostoievskiana passasse a suspeita de uma construção sutil e inovadora, com possibilidades interpretativas sequer imaginadas na leitura inicial. Publicada em 1847, após o sucesso estrondoso de Gente Pobre e a recepção duvidosa de O Duplo, A senhoria trata-se da primeira tentativa do autor em caracterizar um tipo e um tema que seriam marcantes em toda sua produção subseqüente. Conta a história de Ordínov, gérmen do homem do subsolo: nobre intelectual devorado por uma paixão insaciável pela ciência e alheio ao mundo exterior, cuja vida havia passado até então tranqüila e solitariamente em um quarto alugado, introspectivo e sorumbático. Assim nos é apresentado este típico sonhador, ao lado de quem o narrador se posiciona, proporcionando um foco narrativo filtrado pelas impressões e visão de mundo de Ordínov. Esse expediente, fator de incompreensão em sua época, unido à trama que mistura realidade e sonho, fazem da novela um tecido de intricada fazenda, cujos mistérios somos impelidos a (tentar) desvendar.

A narrativa tem início com a necessidade de uma nova moradia para Ordínov, que o lança às ruas pela primeira vez em muito tempo. Forçado a uma situação que exige que se mova e enfrente o mundo para encontrar um novo lugar de pouso, por extensão um lugar no mundo, encara o universo a sua volta com surpresa e alienação. Após flanar pelos bairros petersburguenses à procura de um quarto para alugar, fica intrigado com o comportamento de um inusitado casal numa igreja paroquial e, excitado pela possibilidade de aventura, decide segui-los. Avivado pela forte impressão que o rosto da jovem lhe causara, vê-se impelido a um segundo encontro com o casal, cuja conseqüência imediata devido à sua impressionabilidade exarcebada, seu desnudamento e desproteção de sentimentos é fazê-lo se apaixonar pela moça e se tornar seu inquilino.

Múrin, um velho mujique, e Katierina, sua companheira, formam o contraponto social, moral e intelectual ao mundo de Ordínov, uma possibilidade deste se abrir para o universo exterior levando-o a experimentar “a profunda sensação de que toda a sua vida se partira ao meio”. No embate entre consciências tão distintas, a novela mostra a discrepância existente entre o que Ordínov parece ser e aquilo que ele realmente é. Nesse sentido, a forma como se organiza a narrativa é fundamental à representação do narrador: através da exploração de Ordínov pelos outros ele exibe sua covardia, frouxidão e impotência. Assim como no enredo de aventura que “não se baseia no que é o herói e no lugar que ele ocupa na vida, mas antes no que ele não é e que, do ponto de vista de qualquer realidade já existente, não é predeterminado nem inesperado” (p.119) – como afirma Bakhtin – o enredo desta aventura dostoievskiana está totalmente a serviço da ideia: ele “coloca o homem em situações extraordinárias que o revelam e provocam, aproxima-o e o põe em contato com outras pessoas em circunstâncias extraordinárias e inesperadas justamente com a finalidade de experimentar a ideia e o homem de ideia, ou seja, o ‘homem no homem’” (Problemas da Poética de Dostoiévski, 2010, p.120).

A modelação do homem pelo homem é um ponto básico dessa novela. “Objetivamente incapaz de resolver seu conflito com a realidade que o cerca, Ordínov encontra nos estudos uma forma de evasão. Mas quanto mais se dedica a desenvolver seu intelecto, mais impressionável se torna sua sensibilidade, mais precárias suas relações com as outras pessoas e mais irreversível a dissolução de seus vínculos com o mundo exterior.” (Fátima Bianchi, Pósfácio a A Senhoria, Ed. 34.) Dessa forma, o embate com a solidão torna-se a principal tragédia do sonhador dostoievskiano. Integrante da geração de heróis do tempo – homens cultos sem função orgânica na sociedade, cuja potencialidade frustrada os obriga a se refugiarem em fantasias e ilusões, no ceticismo ou no desespero – Ordínov é um sonhador que começa a novela sem um passado, e chega ao fim dela sem perspectiva de futuro.

A senhoria encontra-se estruturada em duas partes equivalentes, cada qual contendo três capítulos. Como ficou sugerido, sua leitura exige a constante suspeita dos liames narrativos entre realidade e sonho, uma vez que a condição de Ordínov sugere que nem tudo o que acontece na história foi de fato vivido pela personagem no plano da realidade. Fica patente a sugestão de desvario no Cap.2, Parte 2, em que a repetição de “como se”, o uso de verbos de ligação no imperfeito e todo um campo semântico que gira em torno dos vocábulos “impressão” e “sensação”, etc., fazem daquela estranha e fantasiosa conversa entre Ordínov, Múrin e Katierina produto da imaginação alienada daquele. A nulidade em que acaba Ordínov, aproximando-o do homem do subsolo, reitera a ideia de que só por meio da participação na vida viva o homem pode realizar todas as suas potencialidades.

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