2.11.09

Caim de José Saramago

Certa vez, durante uma feira de livros em Lisboa, o escritor José Saramago foi surpreendido por uma leitora que lhe abordou da seguinte forma: “Quando li o Levantado do Chão disse comigo: este escritor é diferente dos outros”. Não disse mais nada, foi embora. “Acertou em cheio” escreveria o português mais tarde em seu diário , pois “não disse ‘melhor que os outros’, disse ‘diferente’ e não imagina a que ponto lhe fiquei grato”. E conclui: “a mais não aspiro”.

Prosa que destila poesia, a escrita de Saramago já foi caracterizada por longos parágrafos repletos de elementos simétricos e estruturas barrocas, desenhados por uma linguagem vibrante e irônica que se revela em volutas, constantemente inquirindo sobre o mundo ou sobre si mesma. Cada página do Nobel português propõe uma ruptura de convenções, como a abolição de sinais de pontuação, do discurso direto e mesmo da maiúscula inicial de nomes próprios, para dar espaço a uma expressão mais pura, genuína, próxima a dos aedos de eras passadas, tempo em que o mundo se sustinha na palavra falada. Nas palavras do autor: “Todas as características de minha técnica actual provém de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e uso os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras.” (Cadernos de Lanzarote I 1993, entrada do dia 6 de junho.) A leitura de Caim, seu último romance, revela esse princípio em cada respiração do texto: seu passo é tranquilo, seu ritmo é simples, suas indagações contundentes. Não há sobras ou movimentos em demasia, há apenas música; a mesma que reverbera desde o velho testamento, à procura de acordes que a tornem audíveis. Diferente do muito que já foi dito, Caim não se trata de um ataque à igreja ou às convenções cristãs. É muito mais um exercício de questionamento que põe em cheque leituras viciadas do velho testamento e traz à luz a percepção que o escritor ateu—nunca é demais lembrar—sintetizou da seguinte maneira: "a história dos homens é a história de seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele". (Caim, p.88)

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