1.9.11

Fogo morto, de José Lins do Rego

Há uma pujança indescritível neste décimo romance de José Lins do Rego: nenhum outro qualitativo seria capaz de melhor descrevê-lo. A naturalidade com que o autor consegue desenvolver sua narrativa nos passos do projeto estético e ideológico da chamada geração de 30 surpreende pelo complexo aprofundamento psicológico de suas personagens e pela composição essencialmente polifônica da narrativa, onde via de regra predominava o monologismo de uma escrita pós-utópica voltada à avaliação severa da realidade e à construção de uma mentalidade crítica sobre o presente alarmante.

Em Fogo Morto, Zé Lins apresenta três personagens que compõem os núcleos de cada uma das três partes do romance: o seleiro José Amaro, o major Luís César de Holanda Chacon (Seu Lula) e o capitão Vitorino Carneiro da Cunha. Cada uma dessas partes projeta o romance a uma instância temporal distinta que se relaciona profundamente com as personagens que lhe dão nome: o primeiro deles, mestre José Amaro, é perseguido pela imediatez do presente, apresentado ao leitor pegado à rotina de corte e pancada que lhe impõe sua função de seleiro de beira de estrada. Sem passado ou futuro—pouco sabendo de suas origens (o pai lhe era muito fechado), e sem filho homem a quem pudesse transmitir o legado de seu mester, o lugar 'de transição' em que vive reforça ainda mais sua estagnação e imobilidade, presentificando indefinidamente sua condição miserável. Seu Lula, por outro lado, é o contrapeso à primeira parte do romance: representativo de uma classe social em decadência, o senhor de engenho nos é apresentado exatamente através de seu passado, de cujo auge de exploração, produtividade e fartura, o engenho Santa Fé é apenas uma sombra doente. Já o politicamente engajado capitão Vitorino na terceira e última parte, arauto de uma moral quixotesca de justiça e dever, é uma promessa—ainda que fracassada—de mudança, projetando seus desejos e aspirações para um futuro além do escopo narrativo.

O fracassado é, aliás, como apontou Mário de Andrade (resgatado posteriormente por Luis Bueno em sua ‘História do romance de 30’), uma figura catalisadora da literatura daquele decênio. Há naqueles romances um sentido de fracasso diferente do advindo de forças em luta tradicionalmente encontrado em histórias de qualquer época; é um fracasso arraigado na própria fibra de um ser incapacitado para viver, 'que não opõe força pessoal nenhuma, nenhum elemento de caráter, contra as forças da vida, mas antes se entrega sem quê nem porquê à sua própria insolução.' (Mário de Andrade). Para Bueno, a recorrência a este tipo, o fracassado, tem sua natureza manifesta na avaliação negativa do presente, 'daquela impossibilidade de ver no presente um terreno onde fundar qualquer projeto que pudesse solucionar o que quer que seja', e se articula com a identidade nacional a partir da necessidade de se esquadrinhar as misérias do país.

Fracassados são, pois, ironicamente ecoando manias de superioridade, as figuras do capitão Vitorino, Seu Lula e o mestre José Amaro. Este último, a propósito, foi ricamente caracterizado por Zé Lins dentro da Teoria clássica dos Humores-retomada fortemente durante a Idade Média e o Renascimento. A fixação na compleição amarela do celeiro quase que nos passa despercebida, não fosse a fisiológica menção ao fígado em um dos monólogos de sua mulher Sinhá. Naquela teoria, o humor de cada indivíduo seria determinado pela predominância de um dentre quatro fluidos principais do corpo (o sangue, a fleuma, a bílis negra e a bílis amarela) gerando tipos fisiológicos distintos: o sanguíneo, o fleumático, o melancólico e o colérico. É inegável a influência desse princípio na caracterização do mestre José Amaro: a bílis amarela, quente e seca (como a personagem), se relaciona ao fígado e ao elemento fogo. O colérico é irritadiço e agressivo, impulsivo e intuitivo, analisando os dados a partir de um modelo pessoal (impossível não lembrar as palavras recorrentes do mestre “Não estou enganado não. Eu não me engano.”).

Teimoso e irascível, José Amaro não passa, todavia, de uma inofensiva voz ressentida contra as injustiças do mundo. Divergindo de outros romancistas regionais que caracterizam a psicologia do homem do povo como algo simples, rústico ou mesmo deficitário, Zé Lins nos apresenta o mestre seleiro em toda sua complexidade de homem da terra, cujos anseios e razões são muito mais insondáveis que de qualquer indivíduo cultivado—deixando leitores de qualquer época profundamente incomodados com a força de mudança que o retrato de indivíduos imóveis e de uma sociedade sedimentada em seu modo de ser é capaz de suscitar.

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