ENDE, Michael. A história sem fim
Gmork manteve-se durante muito tempo calado e imóvel. Atreiú já temia não obter resposta para a sua pergunta, quando finalmente o peito do lobisomem se encheu num suspiro profundo e ele começou a dizer em voz rouca:
- Por quem me toma, filhinho? Pensa que sou seu amigo? Cuidado! Estou apenas passando o tempo falando com você. E, agora, já nem sequer pode sair daqui. Eu o retive, aproveitando-me da sua esperança. Mas, enquanto estou aqui falando, o Nada cerca por todos os lados a Cidade-Fantasma e, daqui a pouco, não haverá nenhuma saída. A esta altura, você está perdido. Se me escuta, é porque já se decidiu. Mas, por enquanto, ainda pode fugir.
A expressão medonha da goela de Gmork acentuou-se. Atreiú hesitou durante um décimo de segundo, e depois sussurrou:
- Diga-me o segredo! O que eu serei lá?
Gmork tornou a calar-se por muito tempo. Sua respiração era agora ofegante e precipitada. Mas, de repente, sentou, apoiado nas patas dianteiras, e Atreiú teve de olhar para cima para conseguir vê-lo. Só então se deu conta de todo o seu tamanho e horror. Quando o lobisomem voltou a falar, sua voz soou asperamente:
- Você já viu o Nada, filhinho?
- Já, muitas vezes.
- Que aspecto tem?
- É como se uma pessoa estivesse cega.
- Pois bem... Quando entram no Nada, ele se apodera de vocês. Passam a ser como uma doença contagiosa, que cega os homens, tornando-os incapazes de distinguir entre aparência e a realidade. Sabe o nome que eles dão a vocês?
- Não, murmurou Atreiú.
- ‘Mentiras!’, ladrou Gmork.
Atreiú abanou a cabeça. Seus lábios estavam pálidos.
- Como pode ser isso?
Gmork deliciava-se com o espanto de Atreiú. A conversa animava-o visivelmente. Ao fim de um momento, continuou:
- Você pergunta como vai ser lá nesse mundo? Mas o que é você aqui? Que são todos vocês, seres de Fantasia? Figuras de sonho, invenções do reino da poesia, personagens de uma história sem fim! Você se julga real, filhinho? Pois bem, aqui, neste mundo, você é. Mas, ao entrar no Nada, deixa de existir. Você se tornará irreconhecível. Passará a existir num outro mundo. Nesse mundo, vocês deixam de ser aquilo que eram. Levam ao mundo dos homens a cegueira e a ilusão. Sabe o que aconteceu a todos os habitantes da Cidade-Fantasma que se lançaram no Nada, filhinho?
- Não, gaguejou Atreiú.
- Transformaram-se em desvarios da mente humana, em imagens geradas pelo medo, quando, na realidade, não há nada a temer; em desejo de coisas que os tornam doentes, em idéias de desespero, quando não há razões para desesperar.
- Ficamos todos assim? Perguntou Atreiú aterrorizado.
- Não, replicou Gmork, há muitas espécies de loucuras e de ilusão; se vocês forem belos ou feios, estúpidos ou inteligentes, lá vocês serão mentiras belas ou feias, estúpidas e inteligentes.
- E eu, quis saber Atreiú, que serei eu?
Gmork arreganhou os dentes num sorriso irônico.
- Não vou lhe dizer, filhinho. Logo você verá por si mesmo. Ou melhor, não verá porque já não será você. É por isso que os homens temem e odeiam Fantasia e tudo o que dela vem. Querem aniquilá-la. Mas não sabem que, ao fazê-lo, aumenta a torrente de mentiras que cai ininterruptamente em seu mundo... essa torrente de seres desfigurados, tão diferentes do que eram em Fantasia, e que são obrigados a levar, no mundo dos homens, uma existência de cadáveres vivos, envenenando a alma dos homens com seu odor putrefato. Os homens não sabem disso. Não é divertido?
- E não há ninguém, perguntou Atreiú baixinho, que não nos tema ou odeie?
- Eu, pelo menos, não conheço, respondeu Gmork, e isso não é de espantar, pois vocês próprios, quando estão lá, têm de fazer tudo para que os homens pensem que Fantasia não existe.
- Que Fantasia não existe?, repetiu Atreiú sem compreender.
- Sim, filhinho, respondeu Gmork, é isso precisamente o mais importante. Não percebe? Só não pensarão em visitar Fantasia se pensarem que ela não existe. E tudo depende disso, pois, enquanto não conhecem sua verdadeira natureza, vocês podem fazer deles o que quiserem.
- Fazer deles o quê?
- Tudo o que quiserem. Vocês têm o poder sobre eles. E nada tem mais poder sobre o homem do que a mentira. Porque os homens, filhinho, vivem das idéias. E as idéias podem ser dirigidas. Esse poder é o único que conta. É por isso que eu tenho estado do lado do poder e o servi, para poder participar dele... embora de forma diferente da sua e da dos seres iguais a você.
- Eu não quero participar dele!, balbuciou Atreiú.
- Calma, pequeno louco, rosnou o lobisomem. Quando chegar sua vez de saltar para o Nada, você se transformará também num servidor do poder, desfigurado e sem vontade própria. Quem sabe para o que vai servir. É possível que, com a sua ajuda, se possam convencer os homens a comprar o que não necessitam, a odiar o que não conhecem, a acreditar no que os domina ou a duvidar do que os podia salvar. Por seu intermédio, pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negócios no mundo dos homens, desencadeiam-se guerras, fundam-se impérios... Gmork contemplou o rapaz durante algum tempo, com os olhos semicerrados, e logo acrescentou:
- Há também uma quantidade de pobres tontos que, naturalmente, se julgam muito inteligentes e pensam servir à verdade, e não encontram nada de melhor para fazer do que dissuadir as crianças da existência de Fantasia. Talvez você possa ser útil a eles.
Atreiú permaneceu de cabeça baixa. Agora ele já sabia por que não vinham mais a Fantasia e por que nunca nenhum deles viria para dar um novo nome à imperatriz Criança. Quanto mais se alastrava a destruição de Fantasia, maior era o número de mentiras que entrava no mundo dos homens; precisamente por isso, a cada segundo que se passava, diminuía a possibilidade da vinda de um ser humano. Era um círculo vicioso de onde não se podia fugir. Atreiú sabia-o agora.
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