7.11.14

Neve, de Orhan Pamuk

Na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura de 2006, Pamuk foi apresentado por Horace Engdahl, secretário permanente da Academia Sueca. Naquela ocasião, Engdahl tomou emprestadas as palavras de outra laureada, a escritora austríaca Elfriede Jelinek, que se manifestara publicamente contra a demanda para que escritores e escritoras assumissem uma postura política. Para Jelinek, "o escritor deve dizer aquilo que ele tem de dizer, porque é imprescindível que ele o diga, e não está sob obrigação alguma de falar o que os outros consideram importante, já que de outra maneira ele não teria mais nada a dizer, de outra maneira ele atenderia apenas àquilo que precisasse ser atendido. Isso é muito pouco." E acrescenta: "o escritor diz tudo sem falar sobre tudo".

A noção de que o grande texto literário é importante justamente por aquilo que deixa de dizer não é nova. Trata-se, no fundo, de uma reflexão presente em quase todas as épocas e que, em cada época em que esteve presente, recebeu um tratamento próprio: a catarse de Aristóteles, a moral dos contos de fadas, o sentido da alegoria, o efeito buscado por Poe. No século XX muitos críticos e escritores procuraram estudar essa característica intrínseca da arte de escrever: Milan Kundera, por exemplo, para quem "todas as grandes obras contém alguma coisa inacabada", chama de "tema" a interrogação existencial por trás do enredo e sugere que "quando um romance abandona seus temas e se contenta em contar a história, ele se torna sem densidade". Também Umberto Eco dedicou suas conferências Norton ao mesmo tema, os caminhos não escritos da literatura. Em Seis passeios pelo bosque da ficção, Eco desenvolve os conceitos de leitor-modelo & autor-modelo e atribui-lhes uma relação simbiótica na qual ambas as entidades se esclarecem e efetivam no processo da leitura: do encontro dialógico entre essas duas projeções advém os sentidos mais profundos do texto. Em "Teses sobre o conto" e "Novas teses sobre o conto" o argentino Ricardo Piglia conclui que "o conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que está oculto. Reproduz a busca sempre renovada por uma experiência única que nos permita ver, sobre a superfície opaca da vida, uma verdade secreta."

Nosso autor, Orhan Pamuk, deu prosseguimento a essas reflexões num ciclo de seis conferências realizadas na Universidade de Harvard em 2009. As palestras reunidas no volume "O romancista ingênuo e sentimental" (Companhia das Letras, 2011) reavivam a discussão sobre a indissociabilidade entre ficção e realidade, sobre o que faz cada experiência de leitura única e sobre aquilo que "capacita o romance a produzir uma sensação de autenticidade maior que a da vida em si", a que Pamuk rebatiza de "centro" da obra.

Segundo Pamuk, o centro é uma profunda opinião ou insight sobre a vida, um ponto de mistério, real ou imaginado, profundamente entranhado (p.119). Para o romancista, os romances são escritos para investigar esse local e descobrir suas implicações e é precisamente a existência de um centro que diferencia romances de gênero de romances literários, porque os primeiros são lidos para sentir a paz e segurança de estar em casa (p.114), são previsíveis até mesmo em suas tentativas de imprevisibilidade e neles, de maneira geral, tudo é familiar. Por outro lado, lemos romances literários em busca de orientações para a vida movidos por uma outra espécie de conforto, como alguém que não se sente à vontade com as respostas que apreende do mundo e deseja encontrar-se com outras individualidades igualmente angustiadas: quando concluímos a leitura, o que fica em nossa mente não é a história e seu significado, mas nossos pensamentos acerca da fragilidade da vida humana, da imensidão do mundo e de nosso lugar no universo (P.116).

Discutir a natureza do centro é, pois, tarefa das mais complexas porque depende em larga escala da aproximação dialógica entre a visão de mundo do leitor e a aporia que constitui a escrita de ficção, i.e., a luta do romancista para expressar sua visão pessoal do mundo à medida que procura representar o mundo por outros olhos. Logo, cada leitor achará um centro porque toda leitura é uma experiência única, pessoa e intransferível. Nesse sentido, Neve é uma narrativa valiosa porque expõe dialogicamente através dos pontos de vista conflitantes de suas personagens e insere o leitor ocidental no meio do confronto entre o Islã político, simbolizado pelo manto usado pelas mulheres e tido por radical, e a secularização proposta pelo Estado, representado no romance pela ação militar que culmina em um golpe de estado. Ambientado numa pequena cidade da Turquia completamente cercada pela neve, o romance se desenvolve numa atmosfera de isolamento, na qual conflitos sociais, políticos e étnicos compõem um microcosmo da Turquia nos anos 90.

À maneira labiríntica de Kafka e Borges, o romance Neve (Kar, em turco) segue os passos do poeta Ka quando visita a remota Kars (isso mesmo: Ka < Kar < Kars), a pretexto de escrever sobre uma série de suicídios envolvendo jovens turcas. Durante sua estadia em Kars o poeta, a princípio ateu e em meio a um bloqueio criativo, recupera suas raízes islâmicas e volta a escrever poemas, chegando a compor um livro de poesias também chamado Neve. A busca por esses poemas é a força motriz do romance que se passa, na verdade, alguns meses depois do assassinato de Ka em Frankfurt, anos após o golpe de estado em Kars. Ao tomar conhecimento da morte do amigo, o narrador-autor Pamuk procura refazer os passos de Ka durante sua temporada em Kars e seu exílio na Alemanha em busca do caderno de poemas que iriam compor o livro de poesias nunca publicado. Destarte, a estrutura misè en abime de 'Neve' forma um complexo jogo de discursos, no qual figuram os cadernos de anotações de Ka, os depoimentos dos moradores de Kars, os jornais da época e os registros em vídeos das emissores de TV. Nada, contudo, é capaz de auxiliar Pamuk na reconstrução dos poemas ou na localização do caderno perdido, transformando o romance, no fim das contas, em um frustrado discurso sobre discursos, alguns deles transcritos fielmente, outros filtrados, enviesados ou corrompidos, que questiona até que ponto podemos apreender e julgar o conhecimento que adquirimos uns dos outros por meio da palavra, seja ela escrita ou falada.

Essa sensação é acentuada no romance pela presença ubíqua da neve, que confina as personagens e imprime uma moldura de angústia aos acontecimentos narrados: a nevasca impede que Ka reconheça sua cidade natal ("não reconheceu a cidade de modo algum"), empresta à Kars uma sensação de abandono ("as ruas estavam vazias por causa da neve") e faz prevalecer o tom do romance ("a neve lhe falava de desespero e de aflição"). De maneira análoga às personagens kafkianas (duas delas também referidas pela inicial K.), Ka é essencialmente um observador que se deixa levar de um lado a outro da cidade pelas forças em ação do romance. No entanto, diferente dos romances de Kafka cujos protagonistas estão enredados em situações insólitas que lhes determinam inexoravelmente a vida, 'Neve' não se entrega ao mundo do fantástico ou do absurdo, permanecendo histórica e espacialmente vinculado a um lugar de conflitos que se pretende factual, no limite em que é possível falar de realidade na ficção. O contraponto desse tênue universo são as poesias compostas por Ka, resquícios de uma visão ingênua de poesia nas palavras do poeta: um bom poema sempre parece ter vindo de fora, de muito longe que se opõe fortemente à bruta realidade de Kars, na qual cidadãos são assassinados à queima-roupa, militares abrem fogo contra uma plateia perplexa, jovens cometem suicídio e pessoas são torturadas. 

Por isso mesmo é que, na economia da obra, faz sentido Pamuk ter optado por não encontrar os poemas de Ka. As composições elaboradas durante a permanência do poeta em Kars parecem representar um ideal de mundo e uma postura artística que já perderam sua direta comunicabilidade com o leitor, porque incompatíveis com o fundo político premente do romance. Convém recordar que em várias passagens Ka é duramente criticado por sua postura de poeta observador. Caso viessem a figurar no romance, os poemas mero pretexto narrativo roubariam o centro de uma história que parece escrita para discutir a aparentemente inquebrantável divisão ideológica entre Oriente e Ocidente. Nesse sentido, é sintomático o questionamento no trecho abaixo, porque captura e sintetiza um juízo de valor eminentemente ocidental: "'Deixe-me tentar adivinhar o que você está pensando', disse Azul. 'Essa história é tão bela que um homem pode matar por ela? É isso o que você está pensando, não é?'".

A pergunta é feita a Ka, mas seus desdobramentos romanescos se dirigem a nós, leitores, ávidos por taxar de retrógrado um país que força suas mulheres a cobrirem o corpo e os cabelos enquanto continuamos a reforçar e reinventar padrões de beleza que lançam as mulheres numa busca tanto quanto ou muito mais opressora, porque incessante, e ainda mais humilhante, pois inalcançável. Na fatura do romance, todavia, para além das discussões sobre o Islã político e o axioma representado pelas jovens que se matam para não serem obrigadas e remover seus véus, símbolo da palavra de Deus para os muçulmanos, o centro de 'Neve' parece se revelar nos parágrafos finais do último capítulo do livro, quando o personagem-narrador Pamuk se despede dos habitantes de Kars. Nesse momento, Pamuk pergunta a uma das pessoas presentes se gostaria de dizer algo para os leitores do mundo caso venha algum dia a escrever um livro ambientado na cidade. Se você escrever um livro ambientado em Kars e me colocar nele, responde-lhe a personagem, gostaria que dissesse a seus leitores que não acreditem em nada do que disser sobre mim, em nada do que disser sobre qualquer um de nós. Ninguém poderia nos entender de tão longe. Advém daí a percepção do centro de Neve como um questionamento sobre a função da literatura enquanto caminho para o conhecimento do outro. Até que ponto podemos nos considerar leitores competentes de uma cultura diferente da nossa se tudo a que temos acesso são discursos escritos, depoimentos, imagens, manifestações culturais, etc. que mal bastam para compor uma abstração, quem dirá um povo?

Para concluir, na sequência do diálogo acima Pamuk procura contestar, "ninguém acredita dessa forma naquilo que lê num romance", mas é prontamente emendado por seu interlocutor, "Ah, sim, eles acreditam". Com efeito, alguma coisa acontece no coração de cada leitor quando lê romances. Amiúde ficamos tão impressionados e envolvidos com a natureza das coisas que acontecem nos livros que não raro suspendemos a descrença e sentimos os efeitos e as consequências reais do que se passa com as personagens. Sem a referida suspensão, jamais nos emocionaríamos com a leitura de romances, ou ainda, pouco teríamos a aprender dos romances caso não nos fosse dada a ingenuidade de substituímos a realidade pela ficção, ou no mínimo confundi-la com a vida real. Não raro um autor se esforça em deixar claro que a narrativa que entrega ao público é fruto de sua imaginação. Mesmo assim, até o mais calibrado leitor não consegue evitar o constrangimento das perguntas, Sr. Pamuk, tudo isso realmente aconteceu com o senhor, ou, Em quem terá se inspirado para criar esta ou aquela personagem. Questionamentos como esses nascem, na maioria dos casos, da sensação de verdade que o universo ficcional engendra. Para captar o que o romance não diz, ou aquilo que deixa de dizer, seu tema principal, moral, efeito ou sentido, sua história subterrânea ou mensagem cifrada, seu centro-pamukiano-enfim, é preciso afastar o leitor ingênuo e dar voz de leitura ao sentimental-reflexivo. Ou seja, é preciso ler um romance supondo que ele seja real (atitude ingênua), mas ciente de sua ficcionalidade (postura reflexiva), porque a natureza do romance, segundo Pamuk, se sustenta nesse paradoxo, em "nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios." Sem dúvida Neve é um romance bastante político, mas restringi-lo a esse rótulo é muito pouco, como disse Jelinek. Seu centro pode estar em vários lugares, tão variados quanto sejam os lugares de seus leitores ao redor do mundo.

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