16.7.14

Eles eram muitos cavalos, Luiz Ruffato

Vez ou outra, o "romance" Eles eram muitos cavalos aparece na crítica especializada assim mesmo, com a palavra referente ao gênero posta entre aspas. Difícil, com efeito, chamar ao romance romance, quando tão poucos elementos concorrem para semelhante classificação. Lembro-me da recusa de José Saramago em se referir à Viagem do elefante como um romance, por não haver nele homem que se apaixonasse por mulher, ou seus contrários, ou porque não houvesse "ingrediente que se costuma encontrar em um romance, como um conflito complicado ou um problema de família". Se a viagem cheia de episódios do elefante Salomão não era assunto que justificasse o título que a editora portuguesa insistiu atribuir-lhe, que dizer dos 70 episódios desconexos arregimentados pelo escritor mineiro, tão variados quanto são possíveis as linguagens, formas e pontos de vista narrativos?

O romance-entre-aspas de Luiz Ruffato é composto por microcontos transcorridos ao longo de uma terça-feira, 9 de maio de 2000, na cidade de São Paulo. No entanto, longe de deixar o leitor perdido entre múltiplas sequências de breves histórias anônimas, a versatilidade narrativa de Ruffato permite que cada episódio seja absorvido onivoramente, deglutido e misturado à sensibilidade de quem observa impune aos flagrantes. À medida que impõe uma reflexão sobre o agora metropolitano, Ruffato expõe o leitor a uma linguagem literária aglutinadora que é conto romance poesia ensaio jornal televisão anúncio lista carta peça de teatro etc, demonstrando o deslocamento para a fragmentação, o cruzamento da literatura com outras mídias e a multiplicidade de caminhos tomados pela literatura brasileira a partir da década de 80. 

Essa estética fragmentária presente na forma e no conteúdo coloca "Eles eram muitos cavalos" no centro da complexa dialética que enlaça a realidade representada e a forma da representação. Daí advém, sem dúvida, seu maior trunfo e o motivo de sua aclamação pela crítica. Nas palavras de Flávio Carneiro (No pais do presente, 2003, p.71), "As vezes o miniconto é apenas um recorte de jornal, que, colocado ali, no romance, adquire -- pela mudança de contexto original -- a polissemia característica do texto literário, perdendo parte do seu valor de 'uso' e transformando-se, então, em signo estético, aberto à intervenção do leitor na criação de possíveis significados."

Dessa forma os episódios se sucedem entre o humor e a crítica social: ora se demoram, provocam náusea e revolta, ora são breves-muito-breves e deixam o leitor a desejar que a narrativa torne à moça que sonha, ao médico que se recusa a operar o assaltante de sua casa, ao casal que decide ir a uma casa de swing, à secretária eletrônica de uma amante descoberta. Mas ela nunca torna; e de cada personagem não sabemos mais os seus nomes ou sua origem, como adverte a epígrafe retirada ao "Romanceiro da inconfidência". Como pedaços de um complexo mosaico, os episódios de "Eles eram muitos cavalos" se encaixam idiossincraticamente: emendam-se para formar uma obra que não é só "romance", mas uma elaborada sinédoque da vida nas metrópoles, reino de infinitas possibilidades para a ficção.

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