7.11.14

Neve, de Orhan Pamuk

Na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura de 2006, Pamuk foi apresentado por Horace Engdahl, secretário permanente da Academia Sueca. Naquela ocasião, Engdahl tomou emprestadas as palavras de outra laureada, a escritora austríaca Elfriede Jelinek, que se manifestara publicamente contra a demanda para que escritores e escritoras assumissem uma postura política. Para Jelinek, "o escritor deve dizer aquilo que ele tem de dizer, porque é imprescindível que ele o diga, e não está sob obrigação alguma de falar o que os outros consideram importante, já que de outra maneira ele não teria mais nada a dizer, de outra maneira ele atenderia apenas àquilo que precisasse ser atendido. Isso é muito pouco." E acrescenta: "o escritor diz tudo sem falar sobre tudo".

A noção de que o grande texto literário é importante justamente por aquilo que deixa de dizer não é nova. Trata-se, no fundo, de uma reflexão presente em quase todas as épocas e que, em cada época em que esteve presente, recebeu um tratamento próprio: a catarse de Aristóteles, a moral dos contos de fadas, o sentido da alegoria, o efeito buscado por Poe. No século XX muitos críticos e escritores procuraram estudar essa característica intrínseca da arte de escrever: Milan Kundera, por exemplo, para quem "todas as grandes obras contém alguma coisa inacabada", chama de "tema" a interrogação existencial por trás do enredo e sugere que "quando um romance abandona seus temas e se contenta em contar a história, ele se torna sem densidade". Também Umberto Eco dedicou suas conferências Norton ao mesmo tema, os caminhos não escritos da literatura. Em Seis passeios pelo bosque da ficção, Eco desenvolve os conceitos de leitor-modelo & autor-modelo e atribui-lhes uma relação simbiótica na qual ambas as entidades se esclarecem e efetivam no processo da leitura: do encontro dialógico entre essas duas projeções advém os sentidos mais profundos do texto. Em "Teses sobre o conto" e "Novas teses sobre o conto" o argentino Ricardo Piglia conclui que "o conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que está oculto. Reproduz a busca sempre renovada por uma experiência única que nos permita ver, sobre a superfície opaca da vida, uma verdade secreta."

Nosso autor, Orhan Pamuk, deu prosseguimento a essas reflexões num ciclo de seis conferências realizadas na Universidade de Harvard em 2009. As palestras reunidas no volume "O romancista ingênuo e sentimental" (Companhia das Letras, 2011) reavivam a discussão sobre a indissociabilidade entre ficção e realidade, sobre o que faz cada experiência de leitura única e sobre aquilo que "capacita o romance a produzir uma sensação de autenticidade maior que a da vida em si", a que Pamuk rebatiza de "centro" da obra.

Segundo Pamuk, o centro é uma profunda opinião ou insight sobre a vida, um ponto de mistério, real ou imaginado, profundamente entranhado (p.119). Para o romancista, os romances são escritos para investigar esse local e descobrir suas implicações e é precisamente a existência de um centro que diferencia romances de gênero de romances literários, porque os primeiros são lidos para sentir a paz e segurança de estar em casa (p.114), são previsíveis até mesmo em suas tentativas de imprevisibilidade e neles, de maneira geral, tudo é familiar. Por outro lado, lemos romances literários em busca de orientações para a vida movidos por uma outra espécie de conforto, como alguém que não se sente à vontade com as respostas que apreende do mundo e deseja encontrar-se com outras individualidades igualmente angustiadas: quando concluímos a leitura, o que fica em nossa mente não é a história e seu significado, mas nossos pensamentos acerca da fragilidade da vida humana, da imensidão do mundo e de nosso lugar no universo (P.116).

Discutir a natureza do centro é, pois, tarefa das mais complexas porque depende em larga escala da aproximação dialógica entre a visão de mundo do leitor e a aporia que constitui a escrita de ficção, i.e., a luta do romancista para expressar sua visão pessoal do mundo à medida que procura representar o mundo por outros olhos. Logo, cada leitor achará um centro porque toda leitura é uma experiência única, pessoa e intransferível. Nesse sentido, Neve é uma narrativa valiosa porque expõe dialogicamente através dos pontos de vista conflitantes de suas personagens e insere o leitor ocidental no meio do confronto entre o Islã político, simbolizado pelo manto usado pelas mulheres e tido por radical, e a secularização proposta pelo Estado, representado no romance pela ação militar que culmina em um golpe de estado. Ambientado numa pequena cidade da Turquia completamente cercada pela neve, o romance se desenvolve numa atmosfera de isolamento, na qual conflitos sociais, políticos e étnicos compõem um microcosmo da Turquia nos anos 90.

À maneira labiríntica de Kafka e Borges, o romance Neve (Kar, em turco) segue os passos do poeta Ka quando visita a remota Kars (isso mesmo: Ka < Kar < Kars), a pretexto de escrever sobre uma série de suicídios envolvendo jovens turcas. Durante sua estadia em Kars o poeta, a princípio ateu e em meio a um bloqueio criativo, recupera suas raízes islâmicas e volta a escrever poemas, chegando a compor um livro de poesias também chamado Neve. A busca por esses poemas é a força motriz do romance que se passa, na verdade, alguns meses depois do assassinato de Ka em Frankfurt, anos após o golpe de estado em Kars. Ao tomar conhecimento da morte do amigo, o narrador-autor Pamuk procura refazer os passos de Ka durante sua temporada em Kars e seu exílio na Alemanha em busca do caderno de poemas que iriam compor o livro de poesias nunca publicado. Destarte, a estrutura misè en abime de 'Neve' forma um complexo jogo de discursos, no qual figuram os cadernos de anotações de Ka, os depoimentos dos moradores de Kars, os jornais da época e os registros em vídeos das emissores de TV. Nada, contudo, é capaz de auxiliar Pamuk na reconstrução dos poemas ou na localização do caderno perdido, transformando o romance, no fim das contas, em um frustrado discurso sobre discursos, alguns deles transcritos fielmente, outros filtrados, enviesados ou corrompidos, que questiona até que ponto podemos apreender e julgar o conhecimento que adquirimos uns dos outros por meio da palavra, seja ela escrita ou falada.

Essa sensação é acentuada no romance pela presença ubíqua da neve, que confina as personagens e imprime uma moldura de angústia aos acontecimentos narrados: a nevasca impede que Ka reconheça sua cidade natal ("não reconheceu a cidade de modo algum"), empresta à Kars uma sensação de abandono ("as ruas estavam vazias por causa da neve") e faz prevalecer o tom do romance ("a neve lhe falava de desespero e de aflição"). De maneira análoga às personagens kafkianas (duas delas também referidas pela inicial K.), Ka é essencialmente um observador que se deixa levar de um lado a outro da cidade pelas forças em ação do romance. No entanto, diferente dos romances de Kafka cujos protagonistas estão enredados em situações insólitas que lhes determinam inexoravelmente a vida, 'Neve' não se entrega ao mundo do fantástico ou do absurdo, permanecendo histórica e espacialmente vinculado a um lugar de conflitos que se pretende factual, no limite em que é possível falar de realidade na ficção. O contraponto desse tênue universo são as poesias compostas por Ka, resquícios de uma visão ingênua de poesia nas palavras do poeta: um bom poema sempre parece ter vindo de fora, de muito longe que se opõe fortemente à bruta realidade de Kars, na qual cidadãos são assassinados à queima-roupa, militares abrem fogo contra uma plateia perplexa, jovens cometem suicídio e pessoas são torturadas. 

Por isso mesmo é que, na economia da obra, faz sentido Pamuk ter optado por não encontrar os poemas de Ka. As composições elaboradas durante a permanência do poeta em Kars parecem representar um ideal de mundo e uma postura artística que já perderam sua direta comunicabilidade com o leitor, porque incompatíveis com o fundo político premente do romance. Convém recordar que em várias passagens Ka é duramente criticado por sua postura de poeta observador. Caso viessem a figurar no romance, os poemas mero pretexto narrativo roubariam o centro de uma história que parece escrita para discutir a aparentemente inquebrantável divisão ideológica entre Oriente e Ocidente. Nesse sentido, é sintomático o questionamento no trecho abaixo, porque captura e sintetiza um juízo de valor eminentemente ocidental: "'Deixe-me tentar adivinhar o que você está pensando', disse Azul. 'Essa história é tão bela que um homem pode matar por ela? É isso o que você está pensando, não é?'".

A pergunta é feita a Ka, mas seus desdobramentos romanescos se dirigem a nós, leitores, ávidos por taxar de retrógrado um país que força suas mulheres a cobrirem o corpo e os cabelos enquanto continuamos a reforçar e reinventar padrões de beleza que lançam as mulheres numa busca tanto quanto ou muito mais opressora, porque incessante, e ainda mais humilhante, pois inalcançável. Na fatura do romance, todavia, para além das discussões sobre o Islã político e o axioma representado pelas jovens que se matam para não serem obrigadas e remover seus véus, símbolo da palavra de Deus para os muçulmanos, o centro de 'Neve' parece se revelar nos parágrafos finais do último capítulo do livro, quando o personagem-narrador Pamuk se despede dos habitantes de Kars. Nesse momento, Pamuk pergunta a uma das pessoas presentes se gostaria de dizer algo para os leitores do mundo caso venha algum dia a escrever um livro ambientado na cidade. Se você escrever um livro ambientado em Kars e me colocar nele, responde-lhe a personagem, gostaria que dissesse a seus leitores que não acreditem em nada do que disser sobre mim, em nada do que disser sobre qualquer um de nós. Ninguém poderia nos entender de tão longe. Advém daí a percepção do centro de Neve como um questionamento sobre a função da literatura enquanto caminho para o conhecimento do outro. Até que ponto podemos nos considerar leitores competentes de uma cultura diferente da nossa se tudo a que temos acesso são discursos escritos, depoimentos, imagens, manifestações culturais, etc. que mal bastam para compor uma abstração, quem dirá um povo?

Para concluir, na sequência do diálogo acima Pamuk procura contestar, "ninguém acredita dessa forma naquilo que lê num romance", mas é prontamente emendado por seu interlocutor, "Ah, sim, eles acreditam". Com efeito, alguma coisa acontece no coração de cada leitor quando lê romances. Amiúde ficamos tão impressionados e envolvidos com a natureza das coisas que acontecem nos livros que não raro suspendemos a descrença e sentimos os efeitos e as consequências reais do que se passa com as personagens. Sem a referida suspensão, jamais nos emocionaríamos com a leitura de romances, ou ainda, pouco teríamos a aprender dos romances caso não nos fosse dada a ingenuidade de substituímos a realidade pela ficção, ou no mínimo confundi-la com a vida real. Não raro um autor se esforça em deixar claro que a narrativa que entrega ao público é fruto de sua imaginação. Mesmo assim, até o mais calibrado leitor não consegue evitar o constrangimento das perguntas, Sr. Pamuk, tudo isso realmente aconteceu com o senhor, ou, Em quem terá se inspirado para criar esta ou aquela personagem. Questionamentos como esses nascem, na maioria dos casos, da sensação de verdade que o universo ficcional engendra. Para captar o que o romance não diz, ou aquilo que deixa de dizer, seu tema principal, moral, efeito ou sentido, sua história subterrânea ou mensagem cifrada, seu centro-pamukiano-enfim, é preciso afastar o leitor ingênuo e dar voz de leitura ao sentimental-reflexivo. Ou seja, é preciso ler um romance supondo que ele seja real (atitude ingênua), mas ciente de sua ficcionalidade (postura reflexiva), porque a natureza do romance, segundo Pamuk, se sustenta nesse paradoxo, em "nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios." Sem dúvida Neve é um romance bastante político, mas restringi-lo a esse rótulo é muito pouco, como disse Jelinek. Seu centro pode estar em vários lugares, tão variados quanto sejam os lugares de seus leitores ao redor do mundo.

16.7.14

Eles eram muitos cavalos, Luiz Ruffato

Vez ou outra, o "romance" Eles eram muitos cavalos aparece na crítica especializada assim mesmo, com a palavra referente ao gênero posta entre aspas. Difícil, com efeito, chamar ao romance romance, quando tão poucos elementos concorrem para semelhante classificação. Lembro-me da recusa de José Saramago em se referir à Viagem do elefante como um romance, por não haver nele homem que se apaixonasse por mulher, ou seus contrários, ou porque não houvesse "ingrediente que se costuma encontrar em um romance, como um conflito complicado ou um problema de família". Se a viagem cheia de episódios do elefante Salomão não era assunto que justificasse o título que a editora portuguesa insistiu atribuir-lhe, que dizer dos 70 episódios desconexos arregimentados pelo escritor mineiro, tão variados quanto são possíveis as linguagens, formas e pontos de vista narrativos?

O romance-entre-aspas de Luiz Ruffato é composto por microcontos transcorridos ao longo de uma terça-feira, 9 de maio de 2000, na cidade de São Paulo. No entanto, longe de deixar o leitor perdido entre múltiplas sequências de breves histórias anônimas, a versatilidade narrativa de Ruffato permite que cada episódio seja absorvido onivoramente, deglutido e misturado à sensibilidade de quem observa impune aos flagrantes. À medida que impõe uma reflexão sobre o agora metropolitano, Ruffato expõe o leitor a uma linguagem literária aglutinadora que é conto romance poesia ensaio jornal televisão anúncio lista carta peça de teatro etc, demonstrando o deslocamento para a fragmentação, o cruzamento da literatura com outras mídias e a multiplicidade de caminhos tomados pela literatura brasileira a partir da década de 80. 

Essa estética fragmentária presente na forma e no conteúdo coloca "Eles eram muitos cavalos" no centro da complexa dialética que enlaça a realidade representada e a forma da representação. Daí advém, sem dúvida, seu maior trunfo e o motivo de sua aclamação pela crítica. Nas palavras de Flávio Carneiro (No pais do presente, 2003, p.71), "As vezes o miniconto é apenas um recorte de jornal, que, colocado ali, no romance, adquire -- pela mudança de contexto original -- a polissemia característica do texto literário, perdendo parte do seu valor de 'uso' e transformando-se, então, em signo estético, aberto à intervenção do leitor na criação de possíveis significados."

Dessa forma os episódios se sucedem entre o humor e a crítica social: ora se demoram, provocam náusea e revolta, ora são breves-muito-breves e deixam o leitor a desejar que a narrativa torne à moça que sonha, ao médico que se recusa a operar o assaltante de sua casa, ao casal que decide ir a uma casa de swing, à secretária eletrônica de uma amante descoberta. Mas ela nunca torna; e de cada personagem não sabemos mais os seus nomes ou sua origem, como adverte a epígrafe retirada ao "Romanceiro da inconfidência". Como pedaços de um complexo mosaico, os episódios de "Eles eram muitos cavalos" se encaixam idiossincraticamente: emendam-se para formar uma obra que não é só "romance", mas uma elaborada sinédoque da vida nas metrópoles, reino de infinitas possibilidades para a ficção.

23.6.14

Como um romance, de Daniel Pennac

Verdade seja dita: a grande maioria dos professores não tem a menor ideia de como enfrentar uma legião de alunos que lhe responde peremptoriamente: não, não gostamos de ler. Alguns podem tentar convencê-los do papel da leitura na ampliação do conhecimento de mundo deles; outros talvez apelem para a necessidade de ler romances para ser aprovado em exames de admissão; um mais ingênuo talvez arrisque dizer que Não gostam porque não conhecem, e aquela parcela pragmática pode ser que resuma, Escreve melhor quem lê mais. Há até mesmo o mais radical de todos, aquele que dirá, Pois lerão, de qualquer maneira, ou ainda, o que é bem pior, De qualquer maneira lerão. E caso haja lido Antonio Candido, é possível que um deles dê início a uma inspirada preleção sobre a importância da narrativa no desenvolvimento do homem e do papel humanizador da literatura na vida em sociedade. 

De uma maneira ou de outra, falta-nos aos professores de língua e literatura, uma pedagogia da leitura, um passeio às origens de nosso desejo por histórias e ao derradeiro momento em que perdemos nossos filhos ao encanto da televisão, da internet, e hoje, dos smartphones e tablets. Uma sensibilização que nos faça perceber que o encanto pela leitura, o fascínio pela narrativa, a necessidade de fazer de conta desaparecem na criança a partir do momento em que começamos a exigir-lhes a glosa, o comentário, o sentido do texto, e compreender com essa pedagogia que "os livros não foram escritos para que (...) os jovens os comentem, mas para que, se o coração lhes mandar, eles o leiam". Lembrar que aquele temerário Que-quis-dizer-o-autor, além de não ser o fim da obra em si (afinal, o fim da obra é a própria obra e sua comunicabilidade com o leitor), amiúde rouba à criança e ao adolescente todo o prazer de uma intimidade recém-descoberta entre autor e leitor, precocemente interrompida por um incessante balbucio de datas, nomes e temas impostos pelo programa letivo.

Esse é o ponto de partida do professor e romancista Daniel Pennac ao escrever "Como um romance": que "o verbo ler não suporta imperativos". Nesse sentido, o autor impõe uma só condição para reconciliarmos nossos alunos com a leitura: "não pedir nada em troca. Absolutamente nada. Não erguer uma muralha fortificada de conhecimentos preliminares em torno do livro. Não fazer a menor pergunta. Não passar o menor dever. Não acrescentar uma só palavra aquelas das páginas lidas. Nada de julgamento de valor, nada de explicação de vocabulário, nada de análise de texto, nenhuma indicação biográfica... Proibir-se completamente 'rodear o assunto'". Pennac propõe a leitura-presente – o dar a ler –, uma forma de tratar a curiosidade como a curiosidade deve ser tratada, despertando-a de sua lassidão, combatendo-lhe o sono dos eletrônicos, valorizando o único contexto que nesse momento de encantamento deve ser trabalhado: o de cada leitor, daquela sala de aula cheia de nãos.

Escrito com uma tinta extremamente sensível e irremediavelmente irônica, "Como um romance" é um brilhante ensaio capaz de provocar alunos, professores e pedagogos. Uma leitura tão revigorante que urge periódica revisitação: a bem dizer, um remédio ao desencanto da sala de aula, de uso obrigatório para todos os professores que continuam a sonhar em fazer a diferença. 

18.5.14

o nosso reino, de valter hugo mãe

 'o nosso reino' (2004) é o primeiro romance do escritor angolano Valter Hugo Mãe e compõe, junto a 'o remorso de baltazar serapião', 'o apocalipse dos trabalhadores' e 'a máquina de fazer espanhóis', uma tetralogia que explora os quatro momentos na vida do homem, respectivamente, a infância, a adolescência, a adultez e a velhice. Dessa forma, a narrativa abrange os oito anos de uma criança que em tudo vê manifestações de deus e que, após um desvairado episódio no qual escapa da morte, acredita-se nascido para santo. Através de pequenos milagres e mirabolantes explicações, o pequeno Benjamin atravessa inúmeras provações de sua fé, que culminam na dissolução de seu núcleo familiar e no encontro com a realidade, à medida que se percebe incapaz de explicar tudo à luz de seus beatíficos desvarios. Um romance que exige bastante atenção do leitor devido à bem sucedida fusão entre o-que-acontece e o-que-se-percebe, narrado em retrospecto pelo próprio Benjamin. Difuso, doce e cruel, lírico e criativo, 'o nosso reino' traz uma linguagem nova, desassossegada, que ao mesmo tempo incomoda e provoca o leitor para fora de sua zona de conforto, e cujo primeiro capítulo é dos mais assombrosamente encantadores do que se tem produzido nos últimos anos.

Chama a atenção, ainda, enquanto projeto literário a opção pelo uso de minúsculas, incluída nessa decisão a grafia do nome do autor, posteriormente abandonada por Mãe ao final da tetralogia por receio do recurso obliterar o valor literário de seus romances, reduzidos pelo senso comum a um aspecto formal que salta à vista. A justificativa é das mais belas, e pode ser auferida em entrevista ao programa brasileiro Roda Viva de 06 de janeiro de 2014. Nele, Valter Hugo Mãe diz haver optado pelo uso de minúsculas porque aludem a uma espécie de igualdade, uma forma de democracia das palavras em que elas surgem mesmamente grafadas para terem a mesma importância, deixando dessa forma para o leitor a função de eleger o que é verdadeiramente importante no livro. Dono de uma serenidade na voz e nos gestos verdadeiramente encantadora, de uma maneira de ver o mundo cheia de respeito ao próximo e ternura pelas diferenças, Mãe não poderia ter adotado melhor sobrenome ou romance de estreia: 'O nosso reino' representa o nascimento de uma literatura do bem que se equilibra comovedora e contundente entre o profundamente terno e o visceralmente realista
.

11.4.14

Mudança, Mo Yan

Quando foi anunciado o prêmio Nobel de Literatura de 2012, o chinês Mo Yan ainda não havia sido publicado no Brasil. Foi preciso, portanto, esse empurrãozinho da academia sueca para que nós, brasileiros, pudéssemos lançar mão de um livrinho que fosse do autor de 'Sorgo vermelho', adaptado para o cinema pelo brilhante Zhang Yimou. Perdoados os tantos suponho-que-mereça, não-sei-que-dizer-da-premiação, não-conheço-nunca-ouvi-falar iniciais, já podem os não-leitores de mandarim e não-adeptos-de-traduções-para-outras-línguas-estrangeiras ter acesso ao laureado chinês com o lançamento de 'Mudança'.

A escolha do título não parece aleatória: por um lado por se tratar de uma narrativa breve que, ironizando o próprio título, carrega a candura dos contadores de causos e a despretensiosidade das obras feitas por encomenda (a ocasião é explicada no prólogo); o outro motivo para o acerto da escolha se deve ao caráter autobiográfico do texto que apresenta, ainda que de maneira superficial, seu autor ao público ocidental – a origem humilde no campesinato, as aspirações à uma posição melhor através da tentativa de ingressar na universidade, sua participação no exército, etc.

À medida que fala de si, no entanto, Mo Yan acompanha a trajetória de outros personagens igualmente representativos das mudanças culturais e econômicas ocorridas na China. O mais omnipresente dentre eles havendo sido um caminhão Gaz 51 – representado na capa da edição brasileira – e que povoa os sonhos do jovem Mo, causa-lhe angústia, desejo, alívio e assombro, atravessa o país em transformação e chega até mesmo a ser figurante nas telonas, em certa adaptação fílmica. 

A narrativa pouco linear de Mo Yan faz a linha do uma-coisa-puxa-a-outra, e enreda o leitor num amaranhado de lembranças, prejudicadas ou não pela distância no tempo, modificadas ou não pela memória afetiva. O fato do olhar memorialístico do autor focar tão bem certas personagens, fazendo-as renascer a cada capítulo com novas cores e seus matizes problematizantes, torna toda aleatoriedade um encadeamento suspeito. Não obstante, o vai-e-vem contínuo da narrativa representa um dos pilares da filosofia chinesa, e contribue de maneira sobretudo agradável para este primeiro contato do leitor brasileiro com o prêmio Nobel de Literatura de 2012.

Virginia Woolf, Alexandra Lemasson

Toda biografia, independente da obstinação com que seu biógrafo a considere fidedigna, é uma promessa de verdade “em tensão constante entre a vontade de reproduzir um vivido real passado, segundo as regras da mimesis, e o polo imaginativo do biógrafo, que deve refazer um universo perdido segundo sua intuição e talento criador” (DOSSE, François. O Desafio Biográfico, 2009, p.55). Com isso, a dimensão ficcional é responsável por conduzir o gênero a seu paroxismo, uma vez que a postura do biógrafo não consegue penetrar a esfera do incognoscível e necessita reproduzir a atitude do romancista. Nesse movimento, ao procurar trazer tudo à luz, o biógrafo se encontra frente a uma aporia que o condena ao fracasso e cuja consequência imediata é a criação de uma imagem do biografado.

O trabalho da atriz e jornalista francesa Alexandra Lemasson sobre Virginia Woolf não foge à essa regra. Apesar do louvável esforço no sentido de diluir o mito criado a partir da biografia de Quentin Bell na qual o destaque à "loucura" e ao "recato" influencia até hoje a maneira como os ingleses vêem a autora, mesmo escrevendo contra os preconceitos de romancista difícil e depressiva, cuja companhia literária não é nada simpática, ou ainda que busque louvar a extraordinária força da escritora para superar suas crises a cada término de um novo romance, prevalece na biografia de Alexandra Lemasson o tom de fatalismo, de vida vivida à beira de um precipício, daquela "tendência quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama, pois a vida normal parece incompatível com o gênio", para lembrar Antonio Candido.

Não seja por isso, no entanto, que se vá dar o livro às traças. Quebrando a linearidade muitas vezes praticada no gênero, Alexandra não compartimentaliza a vida da escritora e apresenta o produto de sua pesquisa com liberdade, misturando quando convém dados biográficos e literários. A sensação é a mesma de um mergulho (a plunge! — tantas vezes presente nos romances de Woolf), no qual transborda o fascínio por "essa mulher tão perfeitamente feliz num dia e tão desesperadamente deprimida no outro" (p.34), desejosa de ser uma grande escritora mas atormentada por uma condição nervosa. Ainda que se furte à análise demorada dos romances (verdadeiramente imprópria a uma biografia que pretende ser uma introdução), Lemasson oferece valiosas apresentações para cada obra de Virginia, apresentando-as dentro de seus contextos literário e afetivo. 

Para os leitores de Woolf, o livro trabalha alguns dos lugares-comuns acerca da escritora, refutando-lhes a origem ou aparando-lhes as arestas na tentativa de apresentar suas principais preocupações literárias, influências e obsessões, como sua relação com Leonard, a ubiquidade da morte, o desejo de mostrar que toda categorização é ilusória, e a questão da identidade, aquela necessidade de reafirmar que "cada indivíduo é composto por uma miríade de faces" (p.111-112) presente em toda sua obra. Para os noviços, o livro representa uma chance de conhecer a autora para além dos rótulos; uma forma de enxergá-la pelo prisma de sua inventividade e do caráter revolucionário de sua escrita, menos assombrosa do que fazem crer as más línguas, e mais impressionante quanto mais se conhece a força e a determinação dessa escritora que via na literatura a única forma possível de felicidade.
Trabalhos de amor perdidos, Jorge Furtado

A coleção Devorando Shakespeare da editora Objetiva é resultado de uma mudança no mercado das letras que começou na década de 80, quando tem início o processo de profissionalização do escritor. Se, grosso modo, os anos 50 e 60 foram marcados por uma literatura denunciadora das agitações, e a década de 70 representou o momento do engajamento e da ação, os anos que seguiram nosso período de redemocratização se caracterizam por uma literatura na qual as diferenças não só coexistem como são partes constituintes do edifício ficcional das obras, que passaram a combinar registros múltiplos de linguagem dialogando com o cinema, a televisão e outras mídias.

Esse esforço de integrar o discurso narrativo a outras formas de representação partiu tanto dos autores -- os quais, profissionais das letras, necessitavam competir por leitores com os meios de comunicação de massa -- quanto das editoras, interessadas na popularização do livro e crescimento do mercado consumidor. Criou-se, com isso, uma literatura mais antenada com as tendências culturais, que não apenas dialoga com as linguagens da mídia mas que procura atingir exatamente o mesmo público cativo. A criação de selos ou coleções temáticas encomendadas a autores de destaque de nossa literatura atual responde à esse projeto de movimentação do mercado livreiro, com vistas à adesão de novos leitores bem como à fidelização dos leitores calejados (sem falar nos colecionadores, vítimas da impossibilidade de adquiriram apenas aqueles volumes que, de fato, têm a intenção de ler).

Quem não lembra das coleções Plenos pecados (Objetiva) e Literatura ou morte (Companhia das Letras) na década de 90? Ou mesmo a recente Amores expressos (Companhia das Letras) e a absurda-ainda-que-esperada coleção Clássicos fantásticos (Lua de Papel), que insere mutantes, discos voadores, bruxas e vampiros onde antes havia senhoras, casmurros, isauras e alienistas? Dentre várias coleções, no entanto, Devorando Shakespeare foi, sem dúvida, a mais tímida e breve, contando com apenas três títulos, assinados por Jorge Furtado, Luis Fernando Veríssimo e Adriana Falcão, lançados entre 2005 e 2006. A proposta foi louvável: criar, num contexto contemporâneo, narrativas baseadas no universo das comédias shakespearianas, sejam elas novas versões de suas peças (como fez Veríssimo), recriações de suas personagens (o caso de Falcão) ou ainda releituras mais abrangentes de seu legado cultural, a opção de Furtado. 

Exatamente por essa razão, Trabalhos de amor perdidos foi uma excelente escolha para dar início ao selo ao apresentar ao leitor a importância da obra de Shakespeare através de uma narrativa agradável, bem-humorada e, ao mesmo tempo, descaradamente pedagógica. As citações do bardo proliferam ora explícitas ora escondidas no texto, mas escondidas de forma a brincar com a bagagem do leitor e fazer com que o mesmo consiga detectá-las quando imaginava que não soubesse lá muita coisa que cheirasse a teatro elisabetano. O mote do romance é o mesmíssimo da peça: assim como em Love's labour's lost os fellow-scholars fazem a promessa conjunta de viverem para a filosofia e contemplação da arte longe das mulheres, um canadense, um norte-americano e um brasileiro agraciados com uma bolsa de estudos se encontram em Nova York para louvar o bardo e desenvolver projetos voltados à popularização de sua obra, ao mesmo tempo em que se lançam em complicadas distrações com o sexo oposto. 

Uma espécie de bildungsroman atrapalhado, de leitura rápida e repleto de curiosidades sobre Shakespeare, com um desfecho deveras inusitado (para não dizer sombrio) e uma excelente catalogação de suas personagens: assim pode ser brevemente caracterizada esta primeira ficção longa do diretor de Ilha das flores. Ignorada a arte de capa demasiado erótica para o que o romance efetivamente é, seu maior mérito será alcançado através de sua adoção como introdução à obra de William Shakespeare pelo público brasileiro: livre de academicismos e ranço teórico, Jorge Furtado consegue trabalhar parodicamente o texto original por meio de uma estrutura misè-en-abime em que as personagens e situações compostas pelo dramaturgo inglês são tomadas de empréstimo pelo escritor brasileiro para falarem de seu criador. A grande diferenciação do romance, no entanto, acontece ao final da narrativa, que se distância daquele estar-bem-quando-tudo-acaba-bem das comédias shakespearianas para lembrar ao leitor de hoje o quanto ainda é verdadeira a frase de Hamlet, aquela sobre haver entre o céu e a terra muito mais do que possamos sonhar, seja para o bem ou para o mal.
A Última Quimera, de Ana Miranda

Na obra de Ana Miranda há um recorte bem específico: o diálogo com a tradição literária brasileira. Quatro de seus romances constituem experiências de aproximação à obra de escritores de nosso cânone. A linguagem de cada autor influencia a forma e o conteúdo que o romance terá e, como num palimpsesto, o discurso é tecido de modo a encobrir apenas superficialmente a expressão original dos autores retomados. Incorporando ao seu texto poemas, cartas, crônicas e vocabulário característico daqueles escritores, a autora se relaciona com o cânone através de empréstimos em diferentes graus e engendra, com isso, narrativas que se transformam em recepção crítica estilizada de suas obras.

Três registros principais integram o discurso intertextual do romance 'A última quimera': a poesia de Augusto dos Anjos, a correspondência do poeta com sua mãe e amigos íntimos e a fortuna crítica de sua obra. O hipertexto é construído como a fala de um eu testemunha (Friedman) que arregimenta em um único discurso híbrido essas e outras vozes (admite-se que o narrador não nomeado do romance seja Orris Soares, responsável pela segunda edição do “Eu” (1920), e autor de “Elogio a Augusto dos Anjos”).

Desse amálgama de fontes surge no romance a velha imagem do poeta sofredor e incompreendido, vivendo nas “más condições daquele sobrado”, cercado por “uma sombra” e “voltado para seu passado” em “melancólicas peregrinações”. Uma rápida passagem pelas principais histórias da literatura brasileira confirmaria o sofrimento e a humilhação como constantes da vida de Augusto dos Anjos, sendo raros os casos que não remetam a um ou vários infortúnios do poeta para explicar o conteúdo de sua poesia. Essa compreensão expressa um ponto de vista fortemente presente em nossa crítica, atribuída por Antonio Candido a "nosso modo de ser (...) bastante romântico", "uma tendência quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama, pois a vida normal parece incompatível com o gênio".

Não obstante, o texto de Ana Miranda subverte clichês para apresentar um Augusto dos Anjos multifacetado, num movimento eminentemente pós-moderno de acréscimo e reavaliação: “Ele era assim. Achava que os sofrimentos vêm do inferno – e decerto vêm –, que são brincadeiras dos demônios. Tinha uma visão jocosa do inferno. Ao contrário do que pensam dele, era um homem surpreendentemente bem-humorado, em sua essência mais íntima.” Alimentada por uma tradição crítica constrangida pela impossibilidade de atribuir um lugar na história da literatura a Augusto dos Anjos, Ana Miranda posiciona o poeta contra as tendências da época: “Augusto estava fora disso, era um iluminado, sua poesia tem a centelha divina, não precisa da turbamulta dos escrivinhadores anódinos das confrarias e suas frioleiras. Ele sempre teve a liberdade de raciocínio, sua razão e seus sentimentos sempre foram soberanos.” (MIRANDA, 2000: 262).

Em 'A última quimera', Ana Miranda cria um Augusto com força poética e significado suficientes para criar sua própria escola literária: “Augusto partia do real e mergulhava no ideal. Nesta ascensão, tinha seu negror, sua sinfonia, sua alma tocada de luz. A poesia de Augusto não é simbolista, nem cientificista, nem parnasianista; é feita de carne, de sangue, de ossos, de sopros da morte; é ele, integralmente, na nudez de sua sinceridade existencial, no clamor de suas vibrações nervosas, na apoteose de seu sentir, nos alentos e desalentos de seu espírito. Seus poemas são lâminas de aço polido que refletem seu rosto descarnado (MIRANDA, 2000: 263)”. O arremate da autora, no turbilhão de considerações sobre escolas, tendências e estilos literários conclui a favor de uma leitura de sua poesia livre de rotulações, em que a literatura possa existir naquilo que tem de único e insondável. Nesse sentido reside a maior contribuição do romance: à medida que apresenta o poeta paraibano ao grande público, convida o leitor a questionar e refletir sobre seu lugar em nosso cânone.

3.1.14

PARISOT, Paula. Gonzos e parafusos

Escrever é uma camisa de força. Quero dizer, várias. A primeira camisa de força é a da lógica, com as suas formas de pensamento em geral, dedução, indução, ilação, associação, hipótese, inferência, isso inclui uma série de raciocínios que encadeiam os acontecimentos, as coisas, os elementos da natureza, o ser humano, o acaso, e deve haver coerência e fundamento; depois vem a camisa de força da sintaxe, essa parte da gramática que ensina a unir as palavras para criar orações, períodos, parágrafos, em síntese, o texto em si, regrais estruturais referentes à regência, flexão, tropos, et cetera, ou seja, uma compilação danada; depois tem a camisa de força do vocabulário, não vou envolver Flaubert nisso, mas existe palavra certa, o que não existe é sinônimo. Por exemplo: a palavra “estulto”. Qual é o sinônimo? Insensato? Parvo? Néscio? Imbecil? Idiota? Tolo? Zote? Lorpa? Não. Como disse aquele famoso filósofo egípcio de Alexandria, cada palavra tem a sua própria transcendência, cada coisa é uma coisa e cada caso é um caso. E há ainda a camisa de força do ritmo, não me refiro ao fenômeno musical, nem físico, nem fisiológico, mas ao fenômeno rítmico literário, a cesura, a métrica, a cadência, que não existem apenas na poesia, mas também na prosa, que, conquanto não tenha hexâmetros, decâmetros ou hemistíquios, possui a sua própria cadência. E, ao contrário do que se pensa, o texto ensaístico tem um ritmo mais complexo do que o ficcional. Aliás, eu não lia mais ficção. Parei com isso na adolescência. Li tanto que quase tive uma congestão. E tem mais: hoje em dia existe macete tecnológico para corrigir fotografia, filme, música, tudo, menos textos literários desafinados. 

3.10.12

UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela

Sí, toda novela, toda obra de ficción, todo poema, cuendo es vivo, es autobiográfico. Todo ser de ficción, todo personaje poético que crea un autor hace parte del autor mismo. Y si este pone en su poema un hombre de carne y hueso a quien ha conocido, es después de haberlo hecho suyo, parte de sí mismo.